A ILHA DOS AMORES
E O INFERNO VIRGILIANO
Em Camões, é difícil procurar uma fonte única para qualquer
episódio ou trecho significativo, não pela preocupação da originalidade
a todo preço, corrente em nossos dias, mas por outros motivos que
adiante recordarei.
As pessoas com a sua formação cultural sabiam que a reminiscência
dos Antigos não era sinal de falta de inspiração própria, mas
homenagem consciente ao modelo prestigioso, para ser reconhecida
e admirada na sua execução por aqueles que eram capazes de reconhecê-la
e admirá-la.
Por isso, quando um classicista procura as fontes greco-latinas
de Camões ou de qualquer outro poeta moderno, não pretende diminuí-
lo, antes exaltá-lo, na amplitude do seu convívio espiritual com
a Antiguidade. Este foi em Camões muito extenso e, por isso, difícil
se torna, como atrás dizia, encontrar um modelo único para os episódios
de inspiração greco-latina, tanto mais que, além dos escritores da
Hélade (possivelmente, em tradução latina) e de Roma, há que ter
em conta intermediários como os humanistas e os escritores modernos
até o seu tempo (1).
Também a aproximação literal, de verso a verso, não é tão frequente
em Camões quanto a sugestão genérica, como pode verificar
(1) Cf. VíTOR MANUEL DE AGUIAR E SILVA, Função e Significado do Episódio
da «Ilha dos Amores» na Estrutura de «Os Lusíadas». Lição proferida no
XLVTII Curso de Férias da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, em
3 de Agosto de 1972. Lisboa, 1972.
O estudo de J. PERES MONTENEGRO, O Classicismo Greco-Latino no Episódio
da «Ilha dos Amores», Lisboa, 1936, menciona o canto VI da Eneida, o Somnium
Scipionis e muitas outras reminiscências greco-latinas, mas deve ser lido com espírito
crítico.
27
418 AMÉRICO DA COSTA RAMALHO
quem leia a colecção de exemplos que António Francisco Barata (2)
publicou, em 1882, tirada de um manuscrito do séc. xvi, da Biblioteca
de Évora, e editada com o auxílio do latinista Francisco de Paula
Santa Clara.
Por isso, mais realista me parece a aproximação das duas epopeias
no seu esquema geral, como fez Augusto Epifânio da Silva Dias, na
Introdução (3) da sua edição comentada — uma das melhores jamais
impressas — de Os Lusíadas, saída em 1910. É o mais perfeito paralelo
que conheço e não resisto, por esse motivo, a citá-lo na íntegra,
a isso encorajado também pela sua brevidade: «Na epopeia vergiliana
Eneas, arrojado por uma tempestade ás costas do norte de Africa,
refere á rainha Dido os successos dos últimos dias de Tróia e as aventuras
por que elle passou desde que sahiu da terra pátria até chegar
ás praias onde surgia Carthago (En. II e III); depois, descendo ao reino
das Sombras trava conhecimento por meio de Anchises com os principaes
heroes da historia romana (VI 752-888), e, já antes, Júpiter,
volvens fatorum arcana, revelara a Vénus os brilhantes destinos reservados
ao povo querido da deosa (I 257-296). Nos Lusíadas, Vasco
da Gama, aportando a Melinde, desenrola aos olhos do xeque o grande
quadro da historia de Portugal (cantos III, IV e V), quadro ampliado
por Paulo da Gama, quando explica ao Catual as pinturas históricas
das bandeiras da náo almirante (VIII 1-38); depois, de volta para a
pátria, é levado a uma ilha phantastica, onde uma deosa propheticamente
lhe dá noticia das grandes façanhas com que de futuro se
haviam de illustrar os heroes portugueses (X); e também já anteriormente
o rei dos deoses, «dos fados as entranhas revolvendo», revelara
a Vénus as glorias que aguardavam «a gente Lusitana» (II 44-55).»
Epifânio não aproxima explicitamente a descida «ao reino das
Sombras», do canto VI da Eneida, do episódio da Ilha dos Amores,
mas o seu processo de paralelismo sugere claramente a aproximação.
E, de facto, em Os Lusíadas a Ilha dos Amores recorda os Campos
Elísios da Eneida. Mas uma descida aos Infernos, onde se situa o
Elísio, implicava problemas teológicos mais graves do que uma ilha
imaginária no meio do Oceano. No ambiente português da Contra-
(2) Concordantur praecipua loca inter Virgilium et Camonium. Évora, 1882.
(3) Pp. 12-13.
A ILHA DOS AMORES E O INFERNO VIRGILIANO 419
-Reforma, o Inferno dificilmente seria aceite como uma espécie de
inferno homérico ou virgiliano, para mais havendo um inferno cristão,
considerado lugar de choro e ranger de dentes. Por isso mesmo,
lugar de castigo e não de prémio.
A recompensa só poderia ser dada num «paraíso», palavra grega
(TtaQáôeiaoç) de origem persa, que significa «parque, jardim», e que
os textos bíblicos adaptaram. Isto no que diz respeito à palavra,
porque quanto a descrever o Paraíso cristão não seria fácil nem, por
outro lado, teologicamente aceitável.
Acresce que a imaginação luminosa e pictural do poeta, de que
tratei largamente no meu estudo «O mito de Actéon em Camões»,
o ambiente renascentista em que se formou, e aquele em que as suas
leituras o modelaram espiritualmente, tudo lhe sugeria a concepção
plástica de uma /naxáçcov vfjaoç, «ilha dos bem-aventurados», eternamente
perfeita, gloriosa e feliz.
A Ilha dos Amores é simultaneamente lugar de repouso e glorificação
e pretexto de descrição cosmológica e profecia histórica. Pode
mesmo assinalar-se onde o deleite dos sentidos passa a segundo plano
e começa a espiritualização do episódio: o anticlímax do esclarecimento
das estâncias 89 e seguintes do canto IX, com a apresentação
da ilha como alegoria, e as reflexões morais que, segundo um processo
repetido, terminam o canto.
Por outro lado, a Ilha dos Amores é um episódio complexo e
menos coerente do que a descida aos Infernos da Eneida. Com efeito,
a catábase virgiliana integra-se perfeitamente na pietas do herói.
Virgílio, combinando as suas leituras (4) de filósofos, poetas e profetas,
aborda com uma funda emoção e uma compenetração religiosa tão
intensa a apresentação do mundo do Além, que o leitor do texto latino
não consegue alhear-se do ambiente de mistério que se desprende dos
seus versos, desde o encontro de Eneias com a Sibila de Cumas. Ao
fazer entrar o seu herói no Inferno, lugar de escuridão e sombras, o
poeta sente necessidade de invocar de novo o auxílio dos numes, não
as Musas, neste caso, mas as divindades infernais: «Deuses em quem
(4) Cf. «Literary and philosophical sources of Aeneid VI», em Virgil, Aeneid VI
edited with Introduction and Commentary by Sir Frank Fletcher. Oxford, «1966.
GORDON WILLIAMS, Tradition and Originality in Roman Poetry, Oxford, 1968, p. 395
e segs.
420 AMÉRICO DA COSTA RAMALHO
está o poder sobre as almas, e sombras silenciosas, o Caos e o Flégeton,
regiões sem um ruído, mergulhadas na amplidão da noite, que eu
possa, sem sacrilégio, contar o que ouvi, que me seja permitido, com
vosso acordo divino, revelar segredos escondidos na escuridão e profunduras
da terra» (5).
Assim era necessário, porque na primeira parte da sua viagem
ao Além, Eneias percorre, guiado pela Sibila que lhe descreve os lugares
de passagem, o Inferno tradicional da mitologia pagã, com os seus
monstros variados, os seus rios de lodo e cheiro mefítico e Caronte,
a cuja barca acorre a multidão das sombras dos mortos, «tantas quantas
as folhas que aos primeiros frios de Outono caiem nas florestas»
(309-310).
Virgílio faz passar o seu herói pelos Campos das Lágrimas onde
se encontra Dido, a apaixonada suicida do canto IV, episódio sentimental
que tem merecido ao Mantuano quase tantos reparos, pelo
seu alheamento do clima épico, como a história de Inês de Castro a
Camões. E a Sibila descreve ao troiano o Tártaro ou lugar de
castigo infernal para os que na terra cometeram crimes diversos
que enumera. Até que chegam «aos lugares alegres e amenos prados
e às mansões felizes dos bosques bem-aventurados. Aqui um éter
mais amplo e de radiante luz veste as planuras, há um sol e estrelas
próprias» (6).
Os peregrinos estão nos Campos Elísios, «clímax da jornada»,
como lhes chama Sir Frank Fletcher (7). Por contraste com o Inferno
propriamente dito, Eneias e a Sibila encontram-se agora numa região
cuja luminosidade e colorido nada ficam a dever à Ilha dos Amores.
Há nela, porém, um grau maior de espiritualidade, porque Virgílio
era um pagão com alma antecipadamente cristã e Camões, ao invés,
um cristão com sensibilidade de pagão renascentista.
(5) Di, quibus imperium est animarum, Vmbraeque silentes,
Et Chãos et Phlegethon, loca nocte tacentia late, 265
Sit mihi fas audita loqui; sit numine uestro
Pondere res alta terra et caligine mersas.
(6) Deuenere locos laetos et amoena uirecta
Fortunatorum nemorum sedesque beatas.
Largior hic campos aether et lamine uestit 640
Purpúreo; solemque suum, sua sidera norunt.
(7) Livro citado na nota 4, p. 79.
A ILHA DOS AMORES E O INFERNO VIRGILIANO 421
Nos Campos Elísios se encontram todos quantos beneficiaram
a Humanidade ou serviram os seus compatriotas, de qualquer modo
que fosse. Virgílio procede com maior generosidade do que Cícero
no Sonho de Cipião, pois o lugar no céu é reservado no Somnium apenas
a estadistas e guerreiros, ao passo que no Elísio virgiliano se encontra
«a companhia (manus) dos que sofreram feridas, lutando pela pátria,
de quantos sacerdotes passaram a vida castamente, quantos foram
profetas piedosos e deram oráculos dignos de Febo, ou os que tornaram
a vida mais civilizada, graças à invenção das artes, e de quantos, pelos
seus méritos, se fizeram lembrados a alguém» (660-664) (8).
Deste modo, os Campos Elísios estão povoados, quando Eneias
lá chega e aí encontra Orfeu, o divino cantor, os seus antepassados
troianos («lio ... Assáraco ... Dárdano»), seu pai, Anquises, o profeta
Museu, além do grupo dos que acima ficaram genericamente descritos.
A Ilha dos Amores, essa foi criada para o Gama e seus companheiros
e, nesta jornada inaugural, acolhe heróis vivos.
Os Campos Elísios confirmam a pietas — palavra de conteúdo
semântico complexo que significa, entre outras coisas, o «culto da
tradição e dos antepassados» — corroboram a pietas do herói virgiliano.
Na Eneida, é Anquises quem vai revelar o futuro ao herói, começando
por uma cosmogonia e uma psicogonia, criação do mundo e
transmigração das almas, aquela, segundo a filosofia estóica, e esta,
segundo os princípios da metempsicose pitagórica. E o episódio é,
no seu conjunto, mais platónico do que homérico («Platonic rather
than Homeric» Jackson Knight (9), p. 172).
Em Os Lusíadas temos a cosmografia ptolemaica, acrescida de
anotações renascentistas. E o episódio, segundo uma interpretação
corrente (mas não suficientemente documentada), reflecte leituras
neoplatónicas.
Na Eneida, a teoria da alma eterna do mundo e das almas dos
homens que aguardam na prisão transitória do corpo permite a evocação
(8) Hic manus, ob patriam pugnando uulnera passi; 660
Quique sacerdotes casti, dum uita manebat;
Quique pii uates et Phoebo digna locuti;
Inuentas aut qui uitam excoluere per artes
Quique sui memores aliquos fecere merendo.
(9) «Vergil's Elysium» em Virgil edited by D. R. Dudley, Londres, 1969.
422 AMÉRICO DA COSTA RAMALHO
dos heróis futuros. Em Os Lusíadas, a descrição do Universo, de que
a Terra é centro, prepara a menção dos lugares do nosso planeta onde
hão-de ocorrer os feitos dos Portugueses.
A enumeração dos futuros heróis romanos, posta na boca de
Anquises, é feita com relativa brevidade, talvez porque muitos deles
figuravam nos Anais de Enio que Virgílio imita conscientemente, por
exemplo, na famosa caracterização de Quinto Fábio Máximo (10),
o Cunctator ou «contemporizador».
Um lugar especial e uma descrição mais demorada são concedidos
a César Augusto que, nas peregrinações pelo Império, foi mais longe
do que Hércules e do que Baco (vs. 801-805), e a Marcelo, sobrinho
e genro do imperador. E compreende-se porquê: a Eneida canta
arma uirumque, e o varão é Eneias, protagonista do mito das origens
troianas de Roma.
Mas no decurso da acção o plano mítico e o plano histórico sobrepõem-
se. O filho de Eneias, tão lendário como ele, é Iulo, também
chamado Ascânio, de onde tiram origem os luli, a cuja família pertenciam
Júlio César e Octaviano César Augusto. Deste modo, a Eneida
é o poema dos luli tanto como do povo romano, dos luli como
símbolo e expoente da glória de Roma, dos luli a cujo número
pertencia Rómulo, fundador da cidade, mencionado imediatamente
antes de Augusto.
Num momento crucial do seu destino, quando tudo parecia ir
sossobrar na tempestade da guerra civil, um dos luli deu à cidade e
ao império paz e segurança. É como se Augusto estivesse investido
de um encargo sobrenatural, o de restaurar a cidade que o seu antepassado
fundara. Para mais, o imperador tinha consciência da sua
missão divina e o poeta ainda mais do que ele.
Em 17 a.C, dois anos depois da morte de Virgílio, Augusto mandará
celebrar os ludi saeculares com que se inaugurava o novo saeculum
dos livros sibilinos, o magnus annus dos pitagóricos que anunciavam
uma renovação do Universo. É neste ambiente que Virgílio escreve.
Para ele Augusto torna-se a reincarnação de Eneias e a cidade volta
a encontrar a sua missão eterna, agora que a gens Mia preside aos
seus destinos. Estamos perante uma espécie de movimento circular
(10) Vnus qui nobis cunctando restituis rem (En., VI, 846); cf. com o verso
de Énio, citado por Cícero, De Senectute IV, 10: unus qui nobis cunctando restituit rem.
A ILHA DOS AMORES E O INFERNO VIRGILIANO 423
em que Eneias e Augusto se fundem como símbolos dos mesmos valores
tradicionais, implícitos no conceito da pietas Romana.
Em Os Lusíadas, o papel do Gama parece menos transcendente,
talvez porque a fé que anima o «forte capitão» é partilhada pelos seus
companheiros e o poeta não precisa de acentuar especialmente os
princípios da doutrina cristã. Outros valores puramente humanos,
e não apenas cristãos, recebem maior atenção como a lealdade, o espírito
de obediência e o espírito de sacrifício. Aliás, Camões não se
propõe tratar arma uirumque mas arma uirosque, «as armas e os varões»,
e esta diferença é importante. Por isso, se os comentadores acentuam
que Eneias é um simples instrumento do Destino, com vista à criação
de Roma, e que o verdadeiro herói da Eneida é o povo romano, por
maioria de razão se pode dizer de Os Lusíadas que o seu grande protagonista
é o povo português.
A importância dos dois episódios na estrutura dos poemas a que
pertencem apresenta-se como idêntica.
A catábase, colocada no livro VI, fica, mais ou menos, a meio do
poema e constitui um momento culminante da Eneida. No episódio,
confluem passado e presente e se afirma a eternidade de Roma, cidade
e civilização, com um destino extra-terreno. Da visita aos Infernos,
Eneias sai transfigurado e completamente imbuído da missão que o
Fatum lhe reserva na História.
A Ilha dos Amores está no fim do poema, posição-chave também,
e aí, além da exaltação do esforço humano (e não apenas português)
se encontra a narração dos feitos que os Portugueses vão obrar no
Oriente, isto é, aquela parte da gesta nacional que tem relação mais
directa com a viagem do Gama, pois que sem ela não seria possível.
Se a descoberta do caminho marítimo para a índia é em Os Lusíadas,
o que foi a navegação de Eneias, de Tróia para o Lácio, na Eneida,
e o que havia sido antes, o regresso de Ulisses a ítaca, na Odisseia,
os acontecimentos futuros no Oriente são a justificação dessa viagem
como pretexto e ocasião da epopeia. E justificam igualmente o mais
longo dos episódios de Os Lusíadas, que é também o seu episódio final,
onde, como no Elísio virgiliano, confluem eternidade e temporalidade.
Para completar esta série de aproximações, que não são propriamente
coincidências, nem talvez semelhanças, mas permitem reflexões
paralelas, lembrarei mais uma ainda.
A muitos leitores de Os Lusíadas surgem como o desvanecer da
ilusão mítica aquelas estâncias do canto IX, incrustadas na Ilha dos
424 AMÉRICO DA COSTA RAMALHO
Amores, à guisa de considerações do poeta, sobre o significado da
fiaxáocov vfjaoç. Chamei-lhes atrás um «anticlímax»:
Que as Nymphas do Oceano tão fermosas,
Tethys e a ilha angélica pintada
Outra cousa não he que as deleitosas
Honras que a vida fazem sublimada.
Aquellas preminencias gloriosas,
Os triumphos, a fronte coroada
De palma e louro, a gloria e maravilha,
Estes são os deleites d'esta ilha.
Que as immortalidades que fingia
A antiguidade, que os illustres ama,
Lá no estellante Olympo a quem subia
Sobre as asas Ínclitas da fama
Por obras valerosas que fazia,
Pelo trabalho immenso,que se chama
Caminho da virtude alto e fragoso,
Mas no fim doce, alegre e deleitoso,
Não erão senão prémios que reparte
Por feitos immortais e soberanos
O mundo cos barões que esforço e arte
Divinos os fizeram, sendo humanos;
Que Júpiter, Mercúrio, Phebo e Marte,
Eneas e Quirino e os dous Thebanos,
Ceres, Palias e Juno com Diana
Todos farão de fraca carne humana.
Mas a fama, trombeta de obras tais,
Lhe deu no mundo nomes tão estranhos
De Deoses, Semideoses immortais,
Indigetes, Heróicos e de Magnos.
Por isso, ó vos que as famas estimais,
Se quiserdes no mundo ser tamanhos,
Despertai já do somno do ócio ignavo,
Que o animo de livre faz escravo.
A ILHA DOS AMORES E O INFERNO VIRGILIANO 425
Pois também Virgílio, inesperadamente, deixa o leitor perplexo,
quando Anquises explica ao filho, acompanhando-o à saída do Elísio:
«há duas portas do sonho, das quais se conta que uma é córnea, por
onde saiem sem dificuldade as sombras verdadeiras, e a outra, de marfim
alvinitente, de um brilho perfeito, dá saída para a luz aos sonhos falsos,
enviados pelos espíritos do Além (manes)» (11).
E o poeta conclui: «Com estas palavras, Anquises acompanha
então o filho e a Sibila e os despede pela porta de marfim». Virgílio
parece invalidar, com a saída pela porta dos sonhos falsos, tudo quanto
dissera antes, em alguns dos mais belos versos da Literatura Latina,
subtilmente misteriosos e de estranha musicalidade.
As tentativas de explicação, muitas e variadas, vão desde a de
que o Mantuano nega a realidade a tudo quanto dissera sobre o Além,
até à de que, na sua reserva, procura evitar o sacrilégio de ter revelado
os mistérios de Elêusis. Mas não serão os Campos Elísios, em Virgílio,
tal como a Ilha dos Amores, em Camões, uma alegoria?
AMéRICO DA COSTA RAMALHO
(11) Sunt geminae Somni portae, quarum altera fertur
Córnea, qua ueris facilis datur exitus umbris;
Altera candenti perfecta nitens elephanto, 895
Sed falsa ad caelum mittunt insomnia manes.
His ibi tum natum Anchises unaque Sibyllam
Prosequitur dictis portaque emittit eburna (...)
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