A
CIDADE E AS SERRAS
RESUMO
O seguinte texto pretende
analisar o romance “A Cidade e as Serras” de Eça de Queirós através das
componentes estruturais da narrativa como enredo, espaço, tempo, personagens e
narrador simultaneamente com a problemática crítica apresentada pelo autor. A
análise terá, portanto, uma pequena retrospectiva do movimento literário e do
autor, seu objetivo se concentrará em apontar os elementos narrativos que
demonstram os temas críticos da obra. Pretende-se,
também, relacionar o romance com sua gênese, o conto “Civilização”, ambos
escritos por Eça de Queirós.
INTRODUÇÃO
Escritor ilustre da
literatura mundial, Eça de Queirós introduziu o Realismo no país português. Suas
críticas ferrenhas à sociedade existente e suas descrições, exaustivas de tal
modo que cada pincelada do espaço e dos rostos das personagens parece criar um
quadro perfeito do mundo, são suas maiores características.
Notável pela sua estilística
sarcástica e apontamentos viscerais da verdade, sua escrita impiedosa quer
expor a realidade para aqueles incrédulos que não se deixam percebê-la e requer
também a reflexão crítica e soluções reais para os problemas apresentados. Nada
do escapismo do mundo moderno ou do sentimentalismo estrábico que se afasta da
solução:
o que queremos nós
com o Realismo? Fazer o quadro do mundo moderno, nas feições em que ele é mau,
por persistir em se educar segundo o passado; queremos fazer a fotografia, ia
quase dizer a caricatura do velho mundo burguês, sentimental, devoto, católico,
explorador, aristocrático, etc (QUEIRÓS apud BERRINI p. 31).
Sua maturação literária fora
fortemente influenciada pela geração de 70, do grupo do cenáculo Vencidos da
Vida, por Antero de Quental e pelos filósofos franceses, o Realismo é a forma
literária de pensar o país criticamente, uma literatura engajada.
Apesar de toda sua força e
indignação em início de carreira, Eça parece sossegar na terceira fase de sua
literatura com A Cidade e as Serras,
assim como A Ilustre casa de Ramires
e As correspondências de Fradique Mendes, o ideal é retornar
ao ponto pacífico de Portugal, retirar os problemas sócio-financeiros
existentes e desnecessários como por diversas vezes seus personagens demonstram
e uma revalorização do campo e do meio rural, como zona intocada pela mácula
social e desumana:
No entanto, sem a
rigidez doutrinária de outros tempos e refletindo o final do século pelas vias
históricas, simbólicas e míticas que configuram a mudança ideológica do autor,
sobretudo n’A cidade e as serras e n’A ilustre Casa de Ramires, assim como nos
contos e crônicas produzidos nos anos parisienses. (LOUREIRO, 2009, p. 2).
Isso não significa,
entretanto, que a carga crítica ou as problemáticas tratadas nos romances sejam
diminuídas ou inexistentes. Ao contrário, ao perceber que as reformas políticas
de Portugal não foram efetivas para mudar a sociedade drasticamente, Eça procura
pela melhor alternativa: apresentar a boa e rara parte portuguesa que se salva,
aquela necessária para mantermos a esperança.
O tema do romance póstumo de
Queirós é, portanto, válida para demonstrar sua fase:
Certamente, meu
Príncipe, uma ilusão! E a mais amarga, porque o homem pensa ter na cidade a
base de toda sua grandeza e só nela tem a fonte de toda a sua miséria. [...] Na
cidade findou a sua liberdade moral. [...] Os sentimentos mais genuinamente
humanos logo na cidade se desumanizam! Vê, meu Jacinto! (QUEIRÓS, 1995, p. 50)
A cidade, pela perspectiva
realista da fase do autor, é um espaço doentio e deteriorado. Consome-se
lentamente e não há saídas para um progresso. Antigamente tida como centro de
toda civilização e conhecimento, com o narrador de Eça de Queirós percebemos,
entretanto, uma dicotomia campo x cidade que demonstram uma falha na cidade,
ela não é mais capaz de solucionar seus problemas sociais.
O que é um paralelo
interessante quando comparamos com os ideais utópicos do Cassino Lisbonense, de
uma sociedade ativa, pensante, consciente dos problemas entre si, com uma
comunicação harmônica entre os centros intelectuais. A Paris que Zé Fernandes descreve
no romance é decadente.
Mas o campo tem a capacidade
natural de, tal qual natureza que sempre se renova, florescer a capacidade
humana. De fazer o homem ainda mais humano e não mais corrompido pelo
cientificismo obsoleto e incapaz de ajudar o progresso.
A etimologia do personagem
Jacinto na obra demonstra a grande maestria de Eça de Queirós. Como a flor da
qual recebeu o nome, Jacinto sai da Paris sufocante e demasiadamente tecnológica,
onde não se tinha propósito a não ser procurar futilidades, e migra para o
campo, antiga casa de família herdada. Com os ares das serras do lugar,
revigora as suas forças e seu entusiasmo pela vida, “florescendo” ali. Saindo
do aspecto cavernoso e tornando-se homem viril, do aspecto de homem infeliz,
mesmo sendo cercado por desenvolvimento e riquezas, Jacinto renasce nas serras
portuguesas, como qual o Cristo ressurreto ou algum outro beatificado.
É a marca do passado evocado
para, com esse imaginário, revitalizar o espírito português de autocrítica,
“este romance é a mais clara expressão do permanente cepticismo tecnológico,
científico, filosófico e teológico de Eça” (SARAIVA; LOPES, 2001, p. 885).
ENREDO
Uma das últimas obras de Eça
de Queirós, o romance publicado em 1901 aborda a vida de Jacinto, fidalgo rico,
nascido em castelo nos Tormes, região campestre portuguesa, mas morador do 202
nos Campos Elísios parisienses. Cidadão que preza pela tecnologia, conforto e
luxo e que acreditava na equação que a “suma felicidade” se encontrava com a
união entre “suma ciência” e “suma potência” (QUEIRÓS, 1995, p. 12), acreditava
piamente na civilização como único meio de se alcançar o conhecimento e
felicidade.
A história do chamado
Príncipe da grã-ventura é contada por seu amigo, Zé Fernandes, homem do campo e
sem visível interesse pela tecnologia capaz das mínimas e mais supérfluas
ações. É simples e procura sempre medir o grau de tédio no qual seu amigo
adentra e trazê-lo de volta com distrações e entretenimento.
A reviravolta do livro
ocorre quando as ossadas de parentes antigos de Jacinto devem ser enterradas em
outro lugar, já que a igreja onde descansavam ficara em ruínas devido a uma
grande tempestade. É nessa viagem, desprovido de conforto ou luxo, praticamente
dormindo ao relento e em contato direto com a natureza, que Jacinto muda. O
deslocamento espacial translada seu espírito de modo que a felicidade é
alcançada no campo, não pela favorecida cidade.
Segundo a crítica de Álvaro
Lins, estudioso do autor, A cidade e as
serras não tem enredo, “assegurando que é um livro de decadência, em que o
enredo é inexistente e as personagens ‘de uma extrema miséria de vida’”
(TOLOMEI, 2007, p. 5). Mas por que essa ferocidade? Porque, de fato, as ações
do romance são mínimas, há maior força de análise, desenrolar do
desenvolvimento das personagens e carga crítica na própria questão do espaço
representado na obra que nas ações feitas por Zé Fernandes, Jacinto ou qualquer
outro.
Mas o livro não é decadente
per se, a “extrema miséria de vida” aludida pelo crítico é encontrada principalmente
no espaço e ambientes urbanos: o caos, a ineficiência das máquinas embora a
tecnologia devesse ser útil, o consumismo e visão estereotipada de uma elite
econômica, os temas realistas/naturalistas incômodos do final do século XIX
estão presentes em Paris.
Não que a mesmice e
ignorância intelectual campesina esteja sendo valorizada por Eça de Queirós. Há
a crítica ao conformismo campestre, da religião católica aceita como única
verdade, o mito do sebastianismo ainda forte e a relutância em aceitar
mudanças. Mas as mudanças são possíveis naquele ambiente, como é comprovada pela
conversa entre Silvério e Jacinto na página 109 do romance:
– Bem, meu amigo...
Eram uns seis contos de réis! Digamos dez, porque eu queria dar a todos alguma
mobília e alguma roupa.
Então o Silvério teve
um brado de terror:
–
Mas então, Exmo. Senhor, é uma revolução! (QUEIRÓS, 1995)
O
Príncipe deixa então de ser aquele agraciado com a boa sorte e nesse momento
torna-se o príncipe dos pobres, nobre fidalgo disposto a ajudar, modernizar e
melhorar a região de Tormes, sua herança. Mesmo com as dificuldades, a ação é
mais efetiva no campo, conquanto em Paris, com seus inúmeros contatos, Jacinto
tinha dificuldade em atuar ativamente nos mínimos problemas cívicos, tudo
encoberto por uma camada de gestos grandiloquentes e jantares, mas nenhuma ação
efetiva nos problemas sociais. É essa capacidade de florescer e mudar que valoriza
as serras em detrimento à cidade.
Em
Paris, os dois amigos caminhavam nos parques floridos, encontravam-se com a
elite intelectual, militar, religiosa da cidade, conheciam tipos
“indispensáveis” para uma civilização, debatiam filosofia a cada esquina, porém
tudo com um vazio de realidade; debatiam e procuravam novas doutrinas para
satisfazer o vazio da essência. Jacinto sucumbe finalmente ao pessimismo e essa
era sua única alternativa enquanto vivesse no 202: sua juventude foi arrancada
como por máquinas com toda estruturação falha citadina. Não conseguia mais
viver sem sofrer e pensar sem sofrer. A chance de viajar para o campo e viver,
mesmo a contragosto, sem todo o luxo julgado indispensável abriu seus olhos e
permitiu-lhe entender o que era importante de fato e não sua localização
(embora essa pudesse afetar).
É
quando se muda para as serras que encontra o prazer no progresso, quando o vê
de fato acontecer, é nas serras que encontra paz, renasce e saúde, naquelas
serras que se apaixona e casa.
O
romance se alonga por mais algumas páginas, o narrador Zé Fernandes volta à
Paris, não sentindo nenhum deslumbramento pela cidade maravilhosa, a
civilização de lá parecendo mais decadente. Mal passa alguns dias e se vê estafado
com aquela pompa:
Finalmente
abalei uma tarde, depois de lançar da minha janela, sobre o boulevard, as minhas despedidas à
cidade:
- Pois
adeusinho, até nunca mais! Na lama do teu vício e na poeira da tua vaidade,
outra vez não me pilhas! O que tens de bom, que é o teu gênio, elegante e
claro, lá o receberei na serra pelo correio. Adeusinho! (QUEIRÓS, 1995, p. 137)
A
ideia de que a civilização pode ser levada por correio é brilhante, hilária e
com forte teor irônico, Paris, aparentemente, atinge um ponto limítrofe de
superficialidade que arrasta para lama toda possibilidade de progresso e
melhoria mas a sociedade corrompida pode ser expurgada e a serra conduz novo
feitio de progresso.
É
na parte espacial do campo, por exemplo, que encontramos as pessoas dotadas de
bondade. Na cidade, cada personagem possuía uma característica da destruição
humana, porém no campo, as próprias características físicas mostram o
simbolismo da pessoa boa.
Após
o casamento entre Jacinto e Joaninha, prima do narrador, e depois que Zé
Fernandes volta para Tormes, “para o castelo da Grã-Ventura” (QUEIRÓS, 1995, p.
138), vemos a grande finalização do romance: Paris renegada e as serras
apontando para uma imagem de salvação.
Constatou-se, nesse
percurso através da crítica queirosiana de Álvaro Lins, que ele não mediu
palavras para atacar ou elogiar os textos de Eça, daí a tendência
impressionista de suas leituras críticas. Em geral, o crítico conseguiu
apresentar ao seu leitor o caráter harmônico da obra queirosiana entre o que é
humano e o que é artístico, revelando que o “socialismo” de Eça “foi muito mais
um sentimento do que uma idéia” (TOLOMEI, 2007, p. 5)
Então
não fica apenas a moral e a sugestão de que o trabalho exaustivo da Ideia traz
a civilização e progresso, fica a impressão, para usar das palavras do crítico,
que o autor consegue impactar em seu leitor, a associação entre sentimento e
ideia para mudar o mundo. É a suavização da visão crítica realista, mas a prova
de que perceber a sociedade e melhorá-la é possível.
Em
relação ao enredo, ademais, faz-se necessário mencionar que “A Cidade e as
Serras” como livro póstumo não teve a revisão devida que seu autor
provavelmente quereria. Assim, a partir da página 89, das 139 páginas da obra,
foram amigos de letras de Eça de Queirós que finalizaram o romance do modo como
melhor conseguiram.
Pela
crítica genética, lembramos que “A Cidade e as Serras” fora um prolongamento do
conto “A Civilização” então o enredo não foi atingido drasticamente, mas as
últimas visões críticas das personagens podem ter sofrido alteração, embora
tenham sido claras na sua voz.
A
parte não revisada da obra, pela edição da Formar, concentra-se no
desenvolvimento de Jacinto meio ao campo, seu casamento com Joaninha, as
melhorias tecnológicas no campo e a última viagem de Zé Fernandes para
comprovar como este encontra a felicidade no campo e não na cidade, apesar de
todo entretenimento.
O
TEMPO E O ESPAÇO – UMA RELAÇÃO DO HOMEM E O ESPAÇO
A história passa em Paris, e
nas serras de Portugal. A narrativa se passa no século XIX, quando Paris é
considerada a capital da Europa e o centro mundial. A despeito disso, Portugal
se mantinha como um país agrário e atrasado. Nessa análise do espaço na obra,
queremos desfazer a dicotomia de que cidade significa apenas o progresso e a
vida no campo apenas um lugar bucólico e sem atrativos duradouros. Queremos
mostrar que a face da modernidade cobra seu preço física e psiquicamente no
homem e que a vida no campo pode ser também, um lugar onde acontecem mudanças e
renovação do indivíduo.
Sobre o tempo psicológico
das personagens, Soares (2007 p. 51) nos fala sobre um “tempo interior”, para
tanto utilizados recursos como “o monólogo interior”, apresentando o que há de
mais íntimo na personagem, podendo ser para expressar dor, espera, angústia...
Sobre o espaço, ela ainda continua, como sendo “ambiente, cenário ou
localização, o espaço é o conjunto de elementos da paisagem exterior (espaço
físico) ou interior (espaço psicológico), onde se situam as ações das
personagens”. (Soares, 2007 p. 51-52).
No entendimento de Lins (p.76)
citado por Dimas (1985 p. 20), temos a seguinte definição de espaço e
ambientação: “... Entenderíamos o conjunto de processos... a provocar na narrativa
a noção de um determinado ‘ambiente’. Para aferição do espaço levamos a nossa
experiência de mundo; para ajuizar sobre a ambientação”.
Dimas, ainda continua em
suas palavras:
O romance realista,
na verdade, é exímio em oferecer pistas colaterais, referentes ao espaço, que
nos permitem acompanhar a trajetória das personagens de forma a não prestar
atenção exclusiva à ação. Com a evolução das formas narrativas, deixou-se de
privilegiar a ação o espaço, o tempo ou o personagem para se procurar uma
integração mais harmônica das partes constitutivas do romance. (Dimas, 1985 p.
56).
Ainda sobre o tempo
psicológico, temos Mendilow (1972 p. 131), que nos diz a respeito: “Para
medir-se o tempo, deve-se levar em conta outro padrão, o interior ou
psicológico que envolve a estimação do tempo através de valores individuais”.
Nesse sentido, podemos afirmar que esse tempo interior de percepção, trata-se
das impressões das personagens que depende de valores que variam a todo o momento,
ao contrário do tempo exterior que depende apenas de padrões fixos. Se
pudéssemos imaginar cada personagem com um relógio interno que medisse o tempo
interior, certamente, cada um deles estaria funcionando numa hora especifica.
Seria impossível todos estarem numa mesma sincronia, dadas as experiências
pessoais de cada um que moverá as impressões particulares de cada um. São as
circunstâncias que determinarão o tempo psicológico de cada personagem que vai
muito além do cronológico. Pode-se então concluir que cada indivíduo possui
consigo sua própria maneira de percepção do espaço e do tempo. “Dentro de cada
período este valor varia inversamente, conforme visualizaremos aquela unidade
desde o ponto de vista do passado ou do futuro” (Mendilow, 1972 p. 133).
Quando, na obra, Zé
Fernandes pergunta ao criado Grilo, por que Jacinto andava tão “murcho”, o outro
logo responde: “É fartura!” (Queirós, 2007 p. 80) Ou seja, nem toda a dinâmica
da cidade estava por “sufocar” Jacinto que vivia a bufar: “que maçada!”. O
tempo para Jacinto, nesses momentos em que se sentia entediado, não passava, ou
parecia escorrer lentamente, quase lhe causando sofrimento, já que nada era
capaz, em Paris, de fazê-lo sentir-se completo por muito tempo. Quanto a isso
temos:
Prestamos mais
atenção à passagem do tempo do que o usual, porque estamos mais ansiosos do que
usualmente para que ele passe, porque temos pouco mais de que nos ocuparmos ou
pouco mais em que possamos fixar a nossa mente. E, já que prestamos tanta
atenção ao tempo em um curto período como o faríamos usualmente em um período
mais longo, julgamos que o período seja mais longo do que é. (Mac Taggart,
1921, Vol II, P. 277, apud, Mendilow 1972, p. 134).
Diante dessas apreciações
teóricas, percebemos que o espaço é muito mais do que uma categoria de análise,
mas é uma condição básica e inseparável da trama. Para entendermos a proposta
de Eça ao criar As Cidades e as Serras,
precisamos contextualizá-la no seu tempo, contextualizando a obra no espaço,
pois, não há tempo fora do espaço e vice versa. Contextualizar a obra, no caso
aqui referido, trata-se de enxergar a obra na esfera da estrutura da sociedade
em que se desenvolve a vida das personagens. É nesse espaço que as personagens
passam a imprimir e transformar a sua existência, por meio de seus valores,
tornando assim o espaço inseparável das experiências e condição do Ser. Estar
num determinado lugar, espaço ou cultura é muito mais do que apenas residir
ali, mas se fundir com esse universo, passando esse espaço a ser parte do
próprio indivíduo. Na obra, pode-se afirmar que as características tanto da
cidade como da vida nas serras são exploradas junto com as experiências das
personagens.
Essa relação do homem com o
meio em que vive, deve levar em conta a questão do individuo vivendo num espaço
e transformando-o, por meio dos seus sentimentos e planos, que o leva a uma
ação, num ciclo que não para de se renovar, justamente por causa dessas ações
que o indivíduo se sente impelido a produzir no espaço. “... A organização e o
sentido do espaço são produtos de translação, da transformação e da experiência
sociais”. (SOJA, 1993, p. 101).
Cada indivíduo existe num
determinado ambiente onde se reconhece ou não, modificando-o, agindo sobre ele,
seja positiva ou negativamente, sendo o lugar e o indivíduo inseparáveis, pois
o indivíduo sempre estará fazendo parte de algum espaço enquanto Ser, enquanto
existir. Faz parte da existência humana se reconhecer pertencente ou não num
determinado espaço. A obra traz muito fortemente essa questão de lugar e para
isso Silva (1986, p. 55) nos diz: “... O lugar é algo que sugere alegria ou
solidão, nostalgia ou tensão”. Percebemos na obra que os lugares são os mesmos,
mas as personagens não permanecem as mesmas, ocorrendo então as várias modificações
de visão, de percepção e essência de cada uma delas, ante a realidade.
Essa obra de Eça mostra o
desencanto do autor com a falta de avanço social em Portugal, alimentado pelo
seu desejo de mudanças e modernidade, como também, já nessa terceira fase em
que o autor está novamente fazendo as pazes com Portugal, a obra também mostra
a revalorização da vida interiorana.
Eça consegue mostrar os ares
de uma época onde nascia uma nova metrópole, que recebia constante influência
de toda a Europa, especialmente de Paris, em contraposição com outro espaço que
é o das serras, onde aparentemente a influência das inovações tecnológicas e
pensamentos modernos ainda não alcançaram tal ambiente. Um lugar intacto, não
corrompido de civilização.
Paris era a grande metrópole
ditatorial do século XIX, reconhecida por todos os seus avanços que refletiam
modernidade e cientificismo, mostrando que em geral havia sob essas
modificações, um olhar positivo de mudança diante do futuro, era motivo de
alegria viver nesse tempo de tão incríveis mudanças que traria tantos
benefícios a toda a humanidade. “Suma ciência mais suma potencia igual à suma
felicidade... o incivilizado não suspeita e de que está privado” (Queirós,
2007, p.20) Ainda assim, Jacinto parecia não se sentir completo, mesmo rodeado
de todo o fluxo de desenvolvimento técnico e científico que aquele século lhe
oferecia. A Ciência só parecia lhe trazer uma pseudo felicidade, muito fugaz
que logo se dissipava e o fazia mergulhar num novo mar de tédio. Ainda mais quando
percebia gradualmente que nada parecia ser perfeito, funcionar perfeitamente,
como uma sutil denúncia de que não era a modernidade e todas as suas
comodidades que trariam a completa satisfação. A conquista da ciência estava
atrelada à felicidade, mas Jacinto passou a não sentir suficiência em tudo
isso. Faltava-lhe algo mais, algo que ele não sabia o quê.
O próprio encanto de Zé
Fernandes diante da grande capital é fugaz, mesmo envolvido pela grande
importância dada por Jacinto a todas as máquinas novas que possuía e que
representavam a modernidade do século, logo Zé Fernandes vai percebendo o alto
preço que o progresso cobra, numa rotina que parece sugar todos que a ele se
entregam. Seu próprio amigo Jacinto parecia literalmente sugado, perdendo as forças
físicas para a modernidade, algo que lhe consumia quase todo o tempo. O ritmo
da vida na metrópole parecia afligir Jacinto grandemente, o estresse, diante de
um espaço que parecia criado para esmagar a todos com sua opulência e
imponência. Os afazeres metropolitanos tomam a todos que vivem nas metrópoles e
os consomem quase que compulsoriamente, as pessoas já não possuem tempo para
mais nada. Mesmo sendo uma obra do final do século XIX, percebemos que a nossa experiência
de realidade não é muito diferente da retratada no espaço metropolitano pelo
autor.
Jacinto, mesmo sentindo-se
cada dia mais vazio, ainda apega-se a uma Ideia de pertencer a uma elite que
existe para fomentar o desenvolvimento, trazer o progresso, ainda percebendo
que todos esses esforços o consomem quase que completamente, fazendo-o viver
enfadado, estressado e aborrecido. Quanto a isso, Zé Fernandes diz: “... porque
sou bom, sempre me entristece o desmoronar de uma crença... o denso formigueiro
humano sobre o asfalto... afligia o meu amigo pela brutalidade de sua pressa” (Queirós,
2007, p. 38). Revelando em seu comentário a percepção de que o espaço da
metrópole emparedava o ser humano, sujeitando-o a uma vida triste e árdua: “só
tijolo, só ferro, só argamassa... tudo seco, tudo rígido... Comendo os muros,
as tabuletas...” (Queirós, 2007, p. 42). Zé Fernandes já havia experimentado o espaço acolhedor das
serras e podia com propriedade fazer críticas ferrenhas à dureza mostrada pela
cidade dita como “moderna”, que se erguia todos os dias a custo do suor e
sofrimento de milhares de pobres, de miseráveis, para manter o luxo de alguns
poucos, como o seu próprio amigo Jacinto, fato que percebemos nesse trecho:
E um povo chora de
fome dos seus pequeninos – para que os jacintos em janeiro, debiquem, bocejando
sobre o prato de saxe, morangos gelados em champagne e avivados de um fio de
éter!
_
Eu comi dos teus morangos, Jacinto! Miseráveis tu e eu!
...
_
É horrível, comemos desses morangos... E talvez por uma ilusão!” (Queirós, 2007, p. 89).
Fica
clara a percepção de Zé Fernandes de que são os esforços daquele povo sofrido e
humilde que mantém o luxo de poucos como Jacinto, tornando a cidade um espaço
opressivo para alguns que vivem para criar o deleite de outros, bem como a
cidade, em sua outra face, poderia ser essa cama macia para os poucos que possuíam
o poder nas mãos, gerando um espaço cada vez maior para os ricos, em detrimento
da marginalização dos pobres. Era a convivência de dois mundos desiguais. Essa
desigualdade se faz presente especialmente de modo espacial, onde a cidade se
alargava para dar mais espaço aos ricos, pondo à escanteio, na periferia, cada
vez mais, o pobre.
Talvez
tenham sido essas percepções da realidade para Eça, que o tenham feito nessa
sua terceira fase, uma mais amena, com um olhar mais suavizado sobre Portugal,
tê-lo feito querer fazer as pazes com seu país novamente, percebendo quão
distante estavam os ideais que tanto motivaram em suas conferências, da
verdadeira realidade em que a cidade e o povo estavam mergulhados. O caos da
desarmonia social. “Na turba dos humanos
é a angustiada luta pelo pão, pelo teto, pelo lume, numa casta agitada por
necessidades mais altas, é a amargura das desilusões, o mal da imaginação
insatisfeita, (...) – Eis a vida!” (Queirós, 2007, p. 103).
Outro
trecho ainda nos afirma:
...Cada
manhã (...) impõe uma necessidade, e cada necessidade o arremessa para
dependência; pobre e subalterno, a sua vida é um constante solicitar, adular,
vergar, rastejar, aturar; (...) Alegria como haverá para esses milhões de seres
que tumultuam na arquejante ocupação de desejar – e que, nunca fartando o
desejo, incessantemente padecem de desilusão, desesperança e derrota? Os
sentimentos mais genuinamente humanos logo na cidade se desumanizam! (Queirós,
2007, p. 46).
Cada ação e reação no espaço
da cidade constituem outras variadas demandas, que por sua vez, gera outras
tantas mais, escravizando todos no tempo e no espaço. Um ritmo de vida que o
homem é obrigado a se adaptar para continuar vivendo, ou sobrevivendo; gerando
um desgaste não apenas físico, mas psicológico, recaindo assim a critica do
autor, sobre a capacidade das metrópoles de esgotar o indivíduo, não oferecendo
opções de renovação, mas, antes, sugando-lhe toda a energia. Jacinto vai percebendo
isso gradualmente, algo que se reflete no seu físico e logo consome também o
seu espírito, sua mente, ficando “doente” a intensidade e ritmo frenético da
cidade. “Sofrer é inseparável de viver”. (Queirós, 2007, p. 103). O progresso
não é mais o essencial alimento da mente humana. É preciso novos ares, um novo
espaço.
A serra, em contrapartida, é
o ritmo contrário, onde tudo flui, ainda que com seus percalços, e os percalços
são incentivos para melhorar, para que Jacinto use seus conhecimentos
adquiridos numa vida cosmopolita, buscando assim um equilíbrio entre o moderno
e o campo. O espaço do campo requer mudanças em outro compasso, nada de pressa
e até na rudeza do lugar é possível encontrar beleza, o que vai encantando
Jacinto gradualmente. É a troca de valores, Jacinto experenciando uma nova vida
longe das preocupações da metrópole, das futilidades e sobressaltos da cidade.
Encontra uma nova forma de viver que nem sabia existir.
No espaço da cidade, a
natureza é fragmentada, dividida em alguns pequenos parques espremidos entre
prédios, que parecem passar uma mensagem de que o homem não deve passar muito
de seu tempo por lá, mas deve voltar aos seus afazeres. Nas serras, a natureza
se encontra íntegra, é motivo para admiração constante, desperta a
sensibilidade do espírito.
O encantamento de Jacinto com o espaço das
serras o faz mudar o foco de vida, o faz transformar esse novo ambiente, esse
novo espaço em que está inserido. Segundo Soares (2007), a autora afirma que o
espaço é fundamental, pois não serve apenas como pano de fundo, mas influencia
de forma direta no desenvolvimento do enredo, unindo-se ao tempo. Esse
pensamento vai de encontro ao de Zola, convicto de que o ambiente é capaz de
“modelar” e “determinar” a condição humana.
O encantamento da personagem
Jacinto com o espaço das serras vai além da beleza explícita do lugar, mas tem
haver com um reencontro do indivíduo com o próprio ser. Surgem nesse meio tempo
novas emoções, a noção de família, tanto ao revitalizar os túmulos dos
parentes, quanto ao formar uma nova família, alargar os laços com novas
amizades, ajudar a população carente tirando proveito do que a “civilização”
lhe dera. Era o homem se conectando ao espaço e vice-versa. Jacinto encontra na
vida um novo significado para viver. A serra não tinha tanto valor apenas pela
natureza que exprimia, mas pelos sentimentos que fizera desenvolver na
personagem, que antes, no espaço anterior da cidade, não existiam.
A família de Jacinto sai das serras para a
cidade e Jacinto fecha o ciclo fazendo o percurso contrário. Era o indivíduo
como agente transformador do meio em que habita e como agente de si próprio; e
o meio, agente transformador do homem.
Jacinto não abandona
totalmente o homem da cidade que vive dentro de si, mas o readapta às novas
condições de espaço, transformando-se assim, na figura fundamental de equilíbrio
que une tempo e espaço.
O
FOCO NARRATIVO NO ROMANCE
Em
“A cidade e as serras”, a narração se dá em primeira pessoa do singular, como
já anteriormente o dissemos, por Zé Fernandes, natural das serras de Guiães,
zona campestre de Portugal. Amigo íntimo e familiar do pretendido protagonista
de sua história, Jacinto, portanto narrador personagem, participante e presente
em toda a obra.
Esse
narrador nos direciona às suas observações e às suas impressões, visto que é
por meio de seus olhos que vemos o desenrolar dos fatos, em todos os seus
aspectos.
O
estilo de narração é de uma linguagem que se pudesse mostrar natural, de acordo
com a intelectualidade das personagens que falam, o contexto histórico e o
espaço das cenas. Assim sendo, nas vozes de Zé Fernandes e de Jacinto
observamos o uso demasiado de estrangeirismos, em inglês <<passeio de mail-coach>>, francês <<Monseigneur est servi!>> e até
mesmo latim <<Vanitas Vanitatum>>,
mas que não estão ali por acaso, mas para refletir a intelectualidade, erudição
e instrução dessas personagens em foco, sobretudo quando estão entre nobres na
mansão de Jacinto, em Paris. Em outras ocasiões, seja em conversas íntimas
entre si ou em conversa com e caseiro de Tormes (ele dizia sua incelência), vemos que esse
estrangeirismo diminui, dando lugar à coloquialidade e à informalidade do
falar.
Eça,
como traço estilístico próprio de suas obras, traz nesta A cidade as serras também a minuciosa descrição dos cenários e das
expressões faciais e corporais das personagens, com o desejo de apreender e
expor cada sublime detalhe, como numa pintura realista, a importância de cada
pincelada. No tocante à linguagem, ele a usa recheada de figuras de linguagem para
assim determinar um estado de espírito ou de fisionomia em que, em determinado
momento, se encontra um personagem.
As mais frequentes figuras de linguagem
empregadas são:
A metáfora, que consiste em empregar uma
palavra num sentido que não lhe é comum ou próprio, numa relação de semelhança
entre dois termos, em junção com
A
hipálage, que tem por objetivo
conferir maior expressividade ao discurso:
<<arrastou pelo tapete alguns passos pensativos e moles>>;
<<é um perfume muito agudo e petulante que uma mulher larga ao
passar>>; <<pensei na minha aldeia adormecida>>
A comparação: <<meu pobre jacinto,
numa aplicação conscienciosa, pendia sobre o Teatrofone tão tristemente como
sobre uma sepultura>>
A ironia: <<agora, porém, bendito
Deus, na convivência de um tão grande iniciado como Jacinto, eu compreenderia
todas as finuras e todos os poderes da civilização>>
A onomatopeia: <<Sei recuperaste
Grilo e Civilização! Hurrah!>>, como também o uso do discurso indireto livre e expressões
coloquiais que expressam sentimentos como: << uma maçada!>> e
<uma seca!>> de jacinto e <ah, caramba!>> de Zé Fernandes.
PERSONAGENS
As
personagens de As cidades e as serras
são típicas e planas. De um modo geral, duas merecem destaque:
Jacinto, o protagonista do romance, nascido e
criado em Paris. O gosto pelas tecnologias lhe é intrínseco, demonstra ser um
homem de alto nível de erudição e “civilização”. No início do romance o
personagem diz ser impossível ser civilizado fora do ambiente urbano e de seus
aparatos tecnológicos. Sua vida segue um roteiro que ousamos dividir em três
momentos: o primeiro caracteriza-se pelo horror ao campo que, segundo ele,
embrutecia e bestificava o ser humano; o segundo é marcado pela negação da
cidade e pela valorização do campo; o terceiro, pela busca do equilíbrio entre
a vida simples do campo e algumas conquistas da civilização.
Zé
Fernandes não é apenas um narrador que se dedica a contar uma história, é
também uma personagem. E não uma qualquer, mas uma que deleita de laços bem
estreitos com o protagonista Jacinto. É por meio dele que temos visibilidade e
por meio do qual somos apresentados às personagens, seus conflitos e seus
pensamentos.
O
personagem serrano é dotado de um afeto que parece ultrapassar os limites da
amizade, mas sem indicar um comportamento obsessivo ou vulgar, e sim fraternal.
Isso se evidencia pela forma de tratamento <<Meu Príncipe>>, pela
intimidade que tinha com Jacinto, em adentrar seu quarto, o ver em seus banhos,
a pentear-se, a vestir-se; a forma como comungava de seus bens (no 202 de
Paris dormia na cama do avô D. Galeão,
lugar de estima e honra), em cear e tratar os funcionários de Jacinto como que
seus também etc.
No
tocante ao significado de seu nome, Zé Fernandes cuja etimologia da palavra é
“fernandéz”, estabelece relação com “fernandézia”, um tipo de orquídea, que são
flores sobretudo bem resistentes e que sobrevivem a ambientes diversos. Tanto
que pode ser encontrada em todos os continentes, exceto Antártida. Esta relação
com o nome do amigo de Jacinto pode explicar e dar suporte à sua fácil
adaptação ao campo de singelezas de Tormes e Guiães e à cidade tão civilizada e
requintada, cheia de confortos – Paris!
Os
personagens do campo: Silvério (administrador da propriedade de Jacinto;
Vicência (tia de Zé Fernandes); Joaninha (esposa de Jacinto e prima querida de
Zé Fernandes); Jacintinho e Teresinha (filhos de Jacinto); Melchior (o caseiro
de Tormes) e outros criados e trabalhadores da propriedade serrana de Jacinto,
aparecem como personagens típicas e planas, exemplificando a vida simples e às
vezes pobre do campo, ou exaltando o sentimento e bons ares das serras, em
supremacia à cidade cinza de civilização, no quesito bem-estar, bem-viver.
As personagens ligadas à vida de Jacinto em
Paris são vistas de forma caricata. O narrador acrescenta-lhes sempre um traço
ridículo com a finalidade de criticá-las.
Podemos enxergar como resumo do tipo social representado pelo núcleo parisiense
o seguinte trecho:
“Há os Efrains, Os
Trèves, os vorazes e sombrios tubarões do mar humano, só abandonarão ou
afrouxarão a exploração das plebes, se uma influência celeste, por milagre novo
mais alto que os milagres velhos, lhes converter as almas.” (QUEIRÓS, 1995, p. 52)
O CONTO “CIVILIZAÇÃO”
No conto “Civilização”(1892)
que deu origem ao romance A cidade e as
serras, temos um confronto entre a cidade e o campo. A dicotomia
apresenta-se através de dois grandes momentos da obra: no primeiro Jacinto está
na cidade, rodeado de tecnologias e de livros; no segundo momento o
protagonista está no campo, desprovido dos requintes aos quais estava
acostumado.
Para melhor organização da
análise do conto desenvolvemos na seguinte ordem de pensamento: ação, tempo,
espaço e foco narrativo. Feita a análise confrontaremos algumas passagens
julgadas interessantes que se dão tanto no conto Civilização quanto no romance A
Cidade e as serras, desenvolvidos de formas diferentes, bem como outros
detalhes que não poderiam passar despercebidos.
Iniciaremos pela ação, que
se dá internamente e externamente. Em alguns momentos o narrador recorda fatos:
essas lembranças constituem a ação interna.
Já a ação externa detém-se nas coisas materiais: o jasmineiro com vários
cômodos, biblioteca, sala de banho, entre outros; o velho solar de Torges; e a estação
de trem, todos os atos que movimentam a narrativa.
O tempo é o segundo ponto
importante para ser observado, bifurca-se em dois âmbitos: o tempo cronológico
(no início do conto Jacinto contava vinte e oito anos, no desenvolvimento
aparece-nos com trinta anos, apresenta-se, também, a mudança da estação do ano
“depois desse inverno... sucedeu que Jacinto teve a necessidade moral
iniludível de partir para o norte...”) e o tempo psicológico (consiste no fato
da história ser narrada por alguém que a conhecia e que a tinha vivido, o
narrador tem conhecimento de todos os detalhes e fatos).
Quanto
ao espaço provém uma passagem do ambiente da cidade, com todas as suas
tecnologias e facilidades, para um ambiente totalmente diferente, o campo,
ambiente rústico, desprovido de conforto, no entanto aconchegante e
indiscutivelmente belo. A descrição do
espaço feita por Eça é imagética, a riqueza de detalhes dá-nos a sensação de
estarmos dentro do cenário.
No
tocante do foco narrativo, vemos que o conto é narrado em 1ª pessoa do singular
e no pretérito, trata-se de um narrador personagem, no entanto como é um
personagem secundário vemo-lo como testemunha.
O romance “A cidade e as serras” mantém pontos
importantes encontrados no conto, tais como o nome do protagonista – Jacinto,
com a dicotomia cidade x campo, observa o tédio frente ao excesso de
tecnologias e a aversão inicial do protagonista ao campo. No entanto, em se tratando de modos
narrativos, o conto e o romance diferem em sua estrutura, desenvolvimento,
ação, tempo, foco narrativo.
Comparando a questão do
tempo nos dois modos narrativos vimos que no conto o autor desenvolve o tempo
cronológico e o psicológico, já no romance temos apenas o cronológico. É
interessante a transmutação do tempo psicológico para o cronológico observado
quando as lembranças de José, no conto, acontecem no presente do narrador Zé
Fernandes, no romance.
Algumas recordações
infelizes lembradas no conto parecem-nos risíveis quando narradas por José, por
exemplo, o episódio do fonógrafo que nos é introduzido com leve sarcasmo:
Constantemente sons
curtos e secos retiniam no ar morno daquele santuário. Tic, tic, tic! Dlim, dlim, lim! Crac, crac, crac! Trrre, trrre!... Era o meu amigo comunicando. Todos esses fios
mergulhavam em forças universais. E elas nem
sempre, desgraçadamente, se conservavam domadas e disciplinadas!
(...)
Pois, numa doce noite
de S. João, o meu supercivilizado amigo, desejando que umas senhoras parentas
de Pinto Porto (as amáveis Gouveias) admirassem o fonógrafo, fez romper do
bocarrão do aparelho, que parece uma trompa, a conhecida voz rotunda e
oracular:
– Quem não admirará os progressos deste
século?
Mas, inábil ou
brusco, certamente desconcertou alguma mola vital – porque de repente o
fonógrafo começa a redizer, sem descontinuação, interminavelmente, com uma
sonoridade cada vez mais rotunda, a sentença do conselheiro:
– Quem não admirará os progressos deste século?
Debalde Jacinto, pálido, com os dedos trêmulos, torturava o aparelho.
(Queirós,
Civilização) [grifos nossos]
Outro momento trágico, a
inundação devido à torneira dessoldada, nos aparece, também, de forma cômica:
Nunca eu, para molhar os dedos, me cheguei àquele
lavatório sem terror – escarmentado da tarde amarga de Janeiro em que bruscamente,
dessoldada a torneira, o jacto de água a cem graus rebentou, silvando e
fumegando, furioso, devastador... Fugimos todos, espavoridos. Um clamor atroou
o Jasmineiro. O velho Grilo, escudeiro que fora do Jacinto pai, ficou coberto
de empolas na face, nas mãos fiéis.
(Queirós,
Civilização) [grifo nosso]
Nos trechos classificados
como risíveis percebemos que esse efeito ocorre devido ao narrador que ironiza
constantemente as tecnologias presentes no palácio de Jacinto, alude aos
problemas para questionar a necessidade dos aparatos que parecem extrair a
vitalidade de seu amigo, notado na fala “nunca me recordo sem assombro a sua
mesa [...] eu por vezes surpreendi gotas de sangue do meu amigo”.
Há momentos em que ficamos
em dúvida se o Jacinto do conto é o mesmo do romance por conta de alguns
detalhes divergentes: no conto, Jacinto é herdeiro de uma fortuna de quarenta
contos, não sabemos onde nasceu, teve seu berço cuidado pela mãe, decidiu inesperadamente
ir para o campo, a Quinta de Torges, o procurador e o caseiro chamam-se,
respectivamente, Sousa e Zé Brás; já no romance a fortuna era bem maior,
Jacinto nasceu em Paris, sua avó quem espalhou funcho e âmbar em seu berço,
muito a contra gosto vai para o campo resolver o problema dos ossos de seus
antepassados, a cidadezinha do campo chama-se Tormes, o nome do procurador é
Silvério e do caseiro Melchior. Apesar das diferenças citadas preferimos
entender que “os Jacintos” são a mesma pessoa devido às inúmeras semelhanças ao
longo do texto.
O
que vimos após análise tanto do conto quanto do romance é que, num de seus
últimos textos, Eça de Queirós preza pela capacidade de refletir o mundo
problemático à sua volta e agir sobre ele. Diferentemente das primeiras fases
iniciais de sua carreira, essa ação, crítica e até o julgamento causado pela
sanção social é mais sensível se comparado com sua estreia com o “Primo
Basílio”, as personagens não morrem ou vivem na miséria.
É
ainda pior o destino daqueles que se recusam a funcionar bem em sociedade:
definhar no decadentismo e superficialidade do mundo. Sem função ou base em que
se firmar, a solução não é fácil de se encontrar, mas há um grupo de boas almas
e incorruptas pela noção de cidade, e naquele espaço, a civilização, sem as
hierarquias políticas, mas em vias de se tornar liberal e justa, numa ajuda
comunitária, o progresso ocorre.
É essa região real, mas com
característica quase utópica, que devemos observar, não contaminada pelas
ideias progressistas e desejando o progresso, o paradoxo é reflexivo e
engajado. Os temas principais são solucionados, a desumanização e indiferença
da cidade e dos cidadãos encontra margem e resolvem-se no campo, sob a tutela
do Príncipe de Tormes. As críticas, mais suaves, sobre os tipos campestres e a
beatice ou falta de conhecimento intelectual não são motivos de escárnio, mas
sim nova tela para se construir conhecimento útil e necessário para influenciar
no mundo.
Saindo do Realismo de tese,
dos excessos e das críticas severas, nas serras do romance podemos efetivamente
agir e melhorar o espaço e o mundo. O saudosismo também é uma parte importante
do processo analítico, é essa saudade quando as coisas funcionavam que
precisamos resgatar.
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