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domingo, 28 de julho de 2013

O SIMBOLISMO PORTUGUÊS

A estranheza vai fazer do simbolismo algo moderno. É de alguma maneira uma estética romântica na sua visão de mundo. De alguma maneira o simbolismo oculta a clareza, tende ao mistério.
Foi um salto para a modernidade, especialmente com Baudelaire com “As Flores do Mal 1857”, que teorizava a sinestesia. Enquanto simbolismo é mais velado, como se estivesse por trás de um véu, o romantismo é mais aberto, escancarado.
No século XIX, se instaura uma situação de crise, mudança de foco, de rumo do simbolismo para o realismo. O símbolo, no simbolismo passa a ser o elemento mais importante. “Tudo é simbolizável”. Há um abandono da representação do real para o simbólico, para o abstrato, tanto na pintura como na literatura, no teatro e como não poderia deixar de ser, também da poesia.
Essa aura de mudança caminhou para os momentos modernistas. No Brasil em 22 e em Portugal em 1915, numa série de movimentos vanguardistas, vindos de um desejo de experimentar o novo.
No simbolismo, a ideia tinha que ser sensível, ou seja, passar sensibilidade. As confissões ocultadas por detrás dos véus. O simbolismo, inclusive, deu continuidade a forma do soneto, ao prestigio do neoclassicismo.
O simbolismo Possui muito de modernidade, aberto ao acaso e ao que pode sugerir ao poeta. Pela pluralidade de sentidos, o poema simbolista precisa ser relido por diversas vezes, diferente de um poema parnasiano, por exemplo. É uma poesia muito atenta ao sonoro. O simbolismo inicia a investigação sobre o “eu” (quem sou e o que faço aqui), o que Baudelaire já fazia em As Flores do Mal, onde nada é capaz de trazer a felicidade nesse mundo vencido. O ser humano vencido por dentro, assiste a destruição por fora. Uma sociedade corrompida não pode produzir boas flores, mas apenas flores do mal. É a depressão que toma conta do ser. Quental mesmo dizia em sua obra “melhor não ter nascido”. Assim como Espanca, que se dedicou a uma poesia repleta de solidão e busca incansável por uma plenitude que jamais alcançou, algo além do perímetro de seus limites.
Se bem que não se pode dizer que Florbela Espanca fora uma simbolista, mas permite-se que ela repouse nesse âmbito, por falta de melhor lugar para a autora. Inclusive Florbela ESpanca, em seu desajuste social lembra muito Mario de As Carneiro, ambos com destino trágico, numa arte que revela uma vida mais voltada para a atmosfera do trágico do que para a alegria. Percebemos muita influencia romântica em seu discurso, e assim como aqui no Brasil tivemos Augusto dos anjos, Florbela também sente dificuldade de aderir a um único objetivo. Era como se não fizessem parte do mundo e por um lado, se orgulhavam disso. Assim como muitos outros, foram artistas que apostavam mais na morte, no valor do “nada” e da morte, do que na afirmação da vida. Por volta de 1890, tivemos Eugenio de Castro com seu livro “Oaristo” que inclusive é o livro que dá inicio ao simbolismo em Portugal e Florbela eSpanca vem posterior a esse tempo. Ainda nessa fase, tivemos as representações poéticas de Camilo Peçanha com “Clepsidra”, tendo dentro de si, já o sentimento simbolista.
Esses poetas que escolheram a descrença na vida, foram não raro, ogerizados, tidos como “poetas malditos” pelas escolhas poéticas, vida social diferenciada e olhar sensível.  Na essência do simbolismo, a junção da poesia e da música é fundamental, é uma poesia pura que privilegia a imagem e não necessariamente precisa ter uma explicação. Na verdade, incomum é que tenha. As rimas focam a musicalidade, são poemas criados para ressaltar uma sonoridade musical.
Não pode haver simbolista “feliz”.  Todos possuem uma visão trágica da vida. O simbolismo também é declamatório, justamente por essa questão da sua musicalidade. A clareza do texto é substituída por véus, símbolos e na pintura, vai tender para as imagens impressionistas que vai evoluir para as imagens abstratas. Tudo no simbolismo é diáfano.  
O simbolismo nada mais fez do que valorizar o valor do diáfano, o acaso e o poder da sugestão da palavra.  Palavras com maior conteúdo quando colocadas no verso. O simbolismo quer que as construções ocorram naturalmente, de forma espontânea e não seguindo as formas fixas e engessadas do soneto. O poema simbolista deve intrigar o leitor, trabalhando por muitas vezes na zona da ambigüidade.
Enquanto Eugenio de Castro descobriu que havia um decadentismo Na França e foi buscar o que havia de decadentismo ali, buscando “estudar” o simbolismo, enquanto Peçanha afirmava que a poesia brota de dentro do ser. A repetição de versos, tão comuns na poesia simbolista, vem da poesia trovadoresca, por causa do seu tom musical, que se repete e faz nascer um ritmo. Afinal, não há música sem ritmo. Outro fator que é inerente ao simbolismo é a sinestesia, sempre nos obrigando a ler e reler de novo. É típico do simbolismo esse tom enevoado de tristeza, o livro “Só” de Antonio Nobre, inclusive, seria o livro mais triste de Portugal, seguido de Florbela Espanca, com “Livro de Mágoas”. Antonio Nobre não foi plenamente simbolista, mas possui esse espírito triste que já vem do romantismo, certa melancolia.
No seu poema “Memória”, Antonio Nobre se vale de recursos estilísticos que tentam minimizar a grandeza dos problemas, é um poema que fala de “ser só”, de sofrimento. Fala de um destino o qual o poeta não pode escapar, porque a poesia é o destino para o poeta, para o bem e para o mal.
Esse poeta dá valor a uma linguagem coloquial, focando um material catártico, dos desencontros existenciais. Também valoriza o nacional e a natureza, tratando do exílio existencial, situação de desencontro entre si mesmo e os outros, sensação de isolamento do restante do mundo, de unicidade na vida. 

A astúcia do simbolismo sempre foi fugir da política, das amarras da poesia, se deixando representar assim pela liberdade do símbolo, pela carnavalização da tragédia, da morte, com forte apelo visual, bem como por uso de pedras preciosas e ou semipreciosas. 
Análise / interpretação dos contos A Dama-pé-de-cabra; A morte do Lidador e Aquela Casa triste, do romantismo Português.






INTRODUÇÃO
Os contos escolhidos; A Dama-pé-de-cabra e A morte do Lidador pertencem ao romancista e historiador Alexandre Herculano, enquanto o conto Aquela casa triste, é uma obra de Camilo Castelo Branco. Todos esses contos representam diferentes formas narrativas, onde seus autores participaram ativamente do Romantismo português. Herculano fez parte da primeira fase do romantismo, enquanto Castelo Branco atuou na segunda fase. Seus diferentes estilos e escolhas de linguagem se devem às suas particulares visões de mundo, que muitos influenciaram tanto no espírito de inovação, como na produção de seus textos. 
CLASSIFICAÇÃO DOS CONTOS
O conto a Dama pé-de-cabra, trata-se de uma narrativa em versos, de uma das muitas lendas que circulavam no século XIX. Ledas, buscam o imaginário popular e na Dama-pé-de-cabra, a narrativa em prosa buscada de coletâneas orais, transforma a poesia oral em fala dos personagens, transformando-se no conto como o conhecemos, o que nos faz lembrar um pouco dos irmãos Grimm, que também foram buscar na oralidade a origem de seus contos.
Em A Dama pé-de-cabra, temos também a presença do coro, representado pelo jogral. O termo “coro” provém do grego chorós, que, na Grécia antiga, designava um grupo de dançarinos e cantores usando máscaras que participavam de forma ativa nas festividades religiosas e nas representações teatrais, o que nos dá essa ideia da oralidade sendo passada ao povo por meio também de espetáculos. Eram na verdade, um grupo que representavam um indivíduo e não raro possuíam algo de circense.
Tanto a maioria tinha esse cunho de oralidade, que Herculano se vê obrigado a criar o “narrador ingênuo” que precisa afirmar que a história “é verdadeira” de tão inverossímeis que era essas obras buscadas na oralidade. 
A divisão por trova nos remete ao fato dos poemas narrativos serem escritos sob a influência das tradições bretãs, que se manifestavam no lirismo do país, nos contos e novelas cavalheirescas; esta nova corrente foi iniciada em Portugal no ciclo pós-dionísio.
Herculano, como pesquisador, homem ensaísta de reflexão, mais da ciência do que da ficção, fora busca, nessas obras a raiz de cada uma delas, especialmente, no caso do conto “A morte do Lidador”, que se trata de um romance de linhagem e esses registros anteriores tornam-se bastantes úteis na construção dessas obras por Herculano.
No conto A morte do Lidador, trata-se de uma narrativa épica, que retrata o lidador como uma autoridade ética de caráter, um exemplo de influencia para os demais. O conto como uma perfeita mini-epopéia, reflete o ufanismo da nação portuguesa em formato de prosa épica, contando a fundação da pátria por D. Henrique e o Lidador como guarda-mor desse reino. Representando essa figura épica, representa também o clássico. Uma espécie de Ulisses que salta para o conto de Herculano para representar toda uma nação. Na época de Herculano, apenas ele mesmo conseguia reunir sensibilidade e conhecimento tão aprofundado em relação à historicidade, pois era um clássico e sempre se valia das fontes históricas para construir suas narrativas.
A visão da cultura medieval (maniqueísta) do ponto de vista cristão de que o cristianismo é verdadeiro e todo o restante é o mal. Por isso, os islamitas nesse conto recebem tantos adjetivos depreciativos. Comparativo com judeus que mataram Jesus, por isso, vistos com maus olhos pelos cristãos, algo execrável.  Herculano, assim como Camões, descreve a disparidade entre o número de cristãos e os inimigos mouros, tudo isso para exaltar a coragem e valentia dos lusitanos, representados pelo próprio lidador.
Em Castelo Branco, percebemos em seu conto “Aquela casa triste”, uma grande influencia do romantismo, fazendo o mesmo, parte da segunda geração romântica, e com grande influência das produções de Byron, onde grande foi a presença do “mal do século” como doenças românticas que levavam à morte, morrer de desgosto; ideia que se propagou largamente na época. 
TEMÁTICA DE “AQUELA CASA TRISTE”
Castelo Branco, por sua vez, teve uma extensa produção de obras, que passaram desde o romantismo ao realismo, como também abordou temáticas especificas. Produziu romances que possuem características de diferentes classes de romances, geralmente misturadas, como influência. Podemos perceber em sua obra, algumas dessas características, como sua preferência pelos elementos do romance influenciado. Podemos perceber alguns desses apontamentos que serão descritos, no conto “Aquela casa triste” elementos como traços do “romance negro, com elementos melodramáticos, a passionalidade das personagens, numa ação baseando-se em elementos do romance passional como podemos perceber mulheres abandonadas por seus amores e reconhecimentos de antigas paixões, amores contrariados que acabam no crime ou na morte ou na loucura e o tema principal como a separação dos amantes por um obstáculo, além da desigualdade social e econômica. (Camilo até mesmo intercala duas histórias numa só). Temos ainda, na figura da mulher, o sexo frágil, tão típico do romantismo, uma mulher vítima, anjo inocente, no caso da filha do Africano, Deolinda, e a figura da mulher meio demônio, fatal, no caso de D. Amélia. Algo na trama, sempre está ligado ao pecado ou ao crime onde há homens sedutores e mulheres vítimas, sendo Deolinda, seduzida pelo homem que outrora a salvou no naufrágio do navio, uma figura de homem meio conquistador, meio bom, meio mal, mas que conquista-lhe o coração. Nesse sentido, o final para ser condizente com o perfil romântico escolhido, não poderia ser outro, senão, solidão e abandono. Comumente também, percebe-se cenas conflituosas entre pais e filhos, o que percebemos no desgosto do pai quando descobrira que a filha ama e está a morrer por um desconhecido, enquanto o pai, morre por ela. O desenvolvimento se dá sobre uma paixão enlouquecedora, que leva à morte e a retórica dos diálogos encontram-se repleta de sentimentalismo.   
A obra Camiliana é marcada pela extensão, em sua maioria, além da forma espontânea e por vezes a forma monótona de conduzir o texto. Além do que já foi citado acima, do romantismo, também herdou o gosto pela improvisação e desenvolvimento pelo esquema passional. Por outro lado, as tendências realistas, que já também lhe era usual nessa época; seja para usar como denuncia da perdição humana, como a busca pelo lucro desenfreado (a cobiça), ou como outros aspectos da vida cotidiana podemos perceber também em Camilo.
Os lugares comuns também eram um ponto alto da obra camiliana, por vezes a prosa moralista e longas sentenças, mas por outras, sabendo a vantagem de uma prosa enxuta o que não o impedia de dar lançar mãos de alguns recursos do arcadismo ou mesmo do ultra-romantismo. Enfim, a melhor palavra para definir Camilo, acreditamos ser “versatilidade”, pois ele conseguia caminhar pelos vários terrenos da literatura, sem se perder por nenhum deles. O autor parece deixar livre para que o leitor construa sue próprio julgamento.  

ULTRA-ROMANTISMO E OS AUTORES DOS CONTOS
O Ultra-Romantismo assinala um forte desequilíbrio no domínio do pensamento. Manifesta um predomínio da emoção, da exaltação do espírito, da melancolia que leva ao tédio da vida e, consequentemente, ao desejo da morte, ao fatalismo. A natureza é triste e vai até ao tétrico, ao macabro, com fantasmas, sepulturas, ajustando-se ao estado de alma do poeta. Afirma-se o gosto pelo melodrama tão longe do equilíbrio do drama romântico.
Assiste-se a um excesso de sentimentalismo e as poesias são enfadonhas, de horizontes limitados. Aqui e ali há uma certa religiosidade ligada, muitas vezes, à magia, à crença num regresso das almas a este mundo. O medievalismo leva ao predomínio de uma poesia de caráter popular mais espontânea e de gosto arcaizante:
A sintaxe é pobre, afetiva, de tipo feminino, com anacolutos, exclamações, reticências. Abundam as metáforas. A versificação é monótona. Poetas significativamente ultra-românticos, são ricos de inspiração científica e metafísica.
Herculano, espelho da sobriedade, do equilíbrio, do rigor critico, fora antes de tudo um historiador, sempre se detendo à verdade histórica, aos documentos, levando isso para seus conteúdos ficcionais, não deixando a fantasia sobrepujar as verdades dos fatos nos textos.
Assim, mais historiados do que qualquer outra coisa, acaba sufocando o ficcionista existente dentro de si, graças ao excesso de erudição existente em sua veia, que muito o influenciou na construção de seus escritos, como nas descrições de usos e costumes de épocas, bem como extrema minúcia na narração de fatos e acontecimentos. “Lendas e Narrativas”, se constrói na primeira tentativa de romance histórico realizada pelo autor, com intuito de querer popularizar os costumes daquela vida publica e privada dos séculos semi-barbaros, que não se encaixam no quadro da historia social e política. Com base na erudição histórica, Herculano trata de temos especificamente medievais, como podemos ver em “A Dama Pé-de-Cabra” (baseando-se num ‘romance de um jogral’ onde reconstitui o clima de magia e bruxaria da alta Idade Média cheia de supertição e crenças pagãs) como também, a Morte do Lidador, que propõe demonstrar a grandeza de uma nação, no caso a portuguesa, perante o mundo, pelos feitos dos soldados cristãos contra os mouros, que representavam o mal que necessitava ser extinto.
Herculano, sem dúvidas foi, sobretudo, um grande historiador, o que lhe rendeu fama e destaque, mas, na mesma medida, trouxe-lhe também alguns percalços.  
Já Camilo, lançou-se um pouco mais no terreno das características ultra-românticas, embora onde tenha se destacado mesmo foi no realismo. Mas, a paixão e o amor estão sempre presentes na sua obra. Castelo Branco produz romances que contêm características de diferentes classes de romances, geralmente misturadas. Algumas destas classes de romances são: melodrama, Romance passional; com o tema principal da separação dos amantes por diferentes obstáculos e a desigualdade social, como percebemos no conto “Aquela casa triste”, onde não deixa de apresentar zonas de retórico sentimentalismo ultra-romântico, em que o sacrifício pelo amor também se reveste de todos os traços e vocabulário quase religioso: os amantes patéticos são mártires, rituais expiatórios de um pecado original, que se diria ter provocado a absoluta impossibilidade entre o amor e as circunstâncias de concretização da vida particular. A novela passional camiliana dá sempre uma ideia de um sofrimento fatal: por várias vezes se diz do modo mais direto possível ser "indispensável que o sacrifício aconteça", como depoimento daquilo que, também por vezes muito claramente, se assinala como "religião do amor". Os heróis camilianos do amor dizem-nos por acaso, mais até do que o próprio Camilo gostaria de dizer por meio deles; algo que nos leva ao seguinte entendimento: que, quando se não é possível viver ou fazer, que seja pelo menos possível sentir. O sentir aparece assim, como a mais invencível, ou porque não dizer, a única das liberdades na presença do poder do acaso.
HERCULANO E O CLÁSSICO
Herculano possui parentesco com o clássico, no sentido da busca pela origem histórica para embasar seus escritos e usa isso como meio de libertação do povo e da literatura. Em sua obra é possível detectar o clássico quando aborda o universal, o sentido de nação, de povo, da valorização dos clássicos portugueses. Esse gênero ficcional, doprimeiros romances históricos do século XIX, foi criado numa época em que a sociedade tinha outra visão da História e da relação desta com a ficção. A aproximação feita entre esses dois discursos era de outra natureza. Se hoje se imagina que a História é uma forma de ficção, aquela sociedade olhava o romance histórico como um gênero ficcional que se aproximava da verdade histórica.
Nesse período, a sociedade vivia transformações político-econômicas profundas. Também, cada cidadão passa a ver melhor seu papel na História, Esses acontecimentos tornou a História uma relação de acontecimentos que levam ao presente e que não é mais pautada em certas figuras de poder, mas em toda a nação.
Afinal, pesquisar, conhecer e divulgar a História era para Herculano mais uma luta política que refletia a grande questão do século XIX em Portugal: se o país deveria ser regido por uma monarquia representativa ou absolutista. A História até então apresentava as vidas dos grandes senhores da pátria, os reis, a nobreza e o clero e as batalhas que travaram, esquecendo-se que o povo era quem morria nessas guerras e era também a gente comum que a nobreza extorquia, seja à força ou através de leis que lhes concediam mercês, dízimos, comendas e outras adições. Levantar o papel do povo na História oficial era, mais do que tudo, uma forma de combater o absolutismo e mostrar um passado onde se visse as lutas da população pela liberdade.
O princípio do liberalismo constitucional que Herculano defendia era o da liberdade. As pessoas deveriam ser educadas para poder usufruir dessa liberdade e lutar por ela contra o absolutismo que era uma ameaça latente. A arte, sobretudo a Literatura, deveria atuar na sociedade com um papel educador. Para isso, cabia-lhe o dever de ensinar a História e a liberdade, como um lampejo de esperança para o futuro. Assim, os autores necessitavam dar um ar de veracidade às suas obras ficcionais para que elas fossem aceitas pelo público.
Como pudemos ver, há ironia na estratégia de convencimento da verdade dos fatos contados ficcionalmente. No conto “A Dama Pé de Cabra”, onde o título já assinala para a lenda e o fantástico, não caberia nenhum jogo de verossimilhança, ainda mais sendo o autor um historiador. Contudo, o narrador, logo na primeira parte da “Trova Primeira”, conversa com o leitor: “E não me digam no fim: “Não pode ser.” Pois eu sei cá inventar cousas destas? Se a conto, é porque a li num livro muito velho, quase tão velho como o nosso Portugal. E o autor do livro velho leu-a algures ou ouviu-a contar, que é o mesmo, a algum jogral em seus cantares. É uma tradição veneranda; e quem descrê das tradições lá irá para onde o pague”. (HERCULANO, tomo II 1970: 35).
A construção da identidade portuguesa em sua representação ao longo do tempo mostra-se carregada de caminhos entrecruzados onde passado presente e futuro se laçam compondo um nó simbólico dessa identidade imaginaria. As diversas amostras sociais anseiam esclarecer de alguma maneira o caráter português.
Nos romances de cavalaria há outra construção do “eu”, que se conforma com o signo da religião cristã e trás um sentido mais de provação do “eu” do que de relação opositiva com o outro. Seguindo os passos da construção de Portugal como nação/império encontra-se a figura decisiva para a concretização de uma identidade épica portuguesa que ainda sobrevive e que é nada menos que Camões. A identidade cultural, a cultura nacional é um discurso que produz sentidos, que são formas coletivas de identificação e de construção de identidades, e que esse discurso se eternizar-se nas estórias sobre a nação, em seu reviver de memórias que juntam o presente com o passado. Isso reforça a importância de Os Lusíadas, onde Portugal tem como marco literário uma epopéia de si mesma. Dessa forma a obra literária está diretamente ligada à representação de identidade de uma nação descobridora de um novo mundo. É nesse sentido que a obra de Herculano é clássica, quando se torna representante da identidade do próprio povo, pensando no povo português como diferente de qualquer outro povo europeu.
O povo português se vê maior quando se volta para o passado e vê seus feitos. Por isso Herculano recorre ao passado por meio histórico, para aproximar o povo dos seus grandes feitos do passado e, de forma geral, a integração e a identificação com o passado, ocorre como espelho e reflete a necessidade, de imaginar-se como nação, como um todo, como um inteiro.

Referências bibliográficas
HERCULANO, Alexandre. Contos de Alexandre Herculano. Int. e Seleção de Fernando C. da Silva. Ed. São Paulo: Cultrix, 1995.
CASTELO BRANCO, Camilo. Aquela Casa Triste. In: Moises Massaud. O conto Português. 2ª Ed. São Paulo: Cultrix, 1981, p. 76-93.
DAMAZIO, Paula Regina Scoz Domingos. Identidade e Literatura: a formação de si através do espelho. UFSC.
MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa. Ed 37ª, São Paulo, Cultrix, 2010.
História da Literatura Portuguesa, (DVD-ROM), Porto Editora, Lda. 2002.
MARTINS, Julio; LOPES, Oscar. Manual Elementar de Literatura Portuguesa, Ed. Livraria Didáctica, 1966.



As Cidades e as Serras


A CIDADE E AS SERRAS


RESUMO

O seguinte texto pretende analisar o romance “A Cidade e as Serras” de Eça de Queirós através das componentes estruturais da narrativa como enredo, espaço, tempo, personagens e narrador simultaneamente com a problemática crítica apresentada pelo autor. A análise terá, portanto, uma pequena retrospectiva do movimento literário e do autor, seu objetivo se concentrará em apontar os elementos narrativos que demonstram os temas críticos da obra.   Pretende-se, também, relacionar o romance com sua gênese, o conto “Civilização”, ambos escritos por Eça de Queirós.

INTRODUÇÃO

Escritor ilustre da literatura mundial, Eça de Queirós introduziu o Realismo no país português. Suas críticas ferrenhas à sociedade existente e suas descrições, exaustivas de tal modo que cada pincelada do espaço e dos rostos das personagens parece criar um quadro perfeito do mundo, são suas maiores características.
Notável pela sua estilística sarcástica e apontamentos viscerais da verdade, sua escrita impiedosa quer expor a realidade para aqueles incrédulos que não se deixam percebê-la e requer também a reflexão crítica e soluções reais para os problemas apresentados. Nada do escapismo do mundo moderno ou do sentimentalismo estrábico que se afasta da solução:

o que queremos nós com o Realismo? Fazer o quadro do mundo moderno, nas feições em que ele é mau, por persistir em se educar segundo o passado; queremos fazer a fotografia, ia quase dizer a caricatura do velho mundo burguês, sentimental, devoto, católico, explorador, aristocrático, etc (QUEIRÓS apud BERRINI p. 31).

Sua maturação literária fora fortemente influenciada pela geração de 70, do grupo do cenáculo Vencidos da Vida, por Antero de Quental e pelos filósofos franceses, o Realismo é a forma literária de pensar o país criticamente, uma literatura engajada.
Apesar de toda sua força e indignação em início de carreira, Eça parece sossegar na terceira fase de sua literatura com A Cidade e as Serras, assim como A Ilustre casa de Ramires e As correspondências de Fradique Mendes, o ideal é retornar ao ponto pacífico de Portugal, retirar os problemas sócio-financeiros existentes e desnecessários como por diversas vezes seus personagens demonstram e uma revalorização do campo e do meio rural, como zona intocada pela mácula social e desumana:

No entanto, sem a rigidez doutrinária de outros tempos e refletindo o final do século pelas vias históricas, simbólicas e míticas que configuram a mudança ideológica do autor, sobretudo n’A cidade e as serras e n’A ilustre Casa de Ramires, assim como nos contos e crônicas produzidos nos anos parisienses. (LOUREIRO, 2009, p. 2).

Isso não significa, entretanto, que a carga crítica ou as problemáticas tratadas nos romances sejam diminuídas ou inexistentes. Ao contrário, ao perceber que as reformas políticas de Portugal não foram efetivas para mudar a sociedade drasticamente, Eça procura pela melhor alternativa: apresentar a boa e rara parte portuguesa que se salva, aquela necessária para mantermos a esperança.
O tema do romance póstumo de Queirós é, portanto, válida para demonstrar sua fase:

Certamente, meu Príncipe, uma ilusão! E a mais amarga, porque o homem pensa ter na cidade a base de toda sua grandeza e só nela tem a fonte de toda a sua miséria. [...] Na cidade findou a sua liberdade moral. [...] Os sentimentos mais genuinamente humanos logo na cidade se desumanizam! Vê, meu Jacinto! (QUEIRÓS, 1995, p. 50)

A cidade, pela perspectiva realista da fase do autor, é um espaço doentio e deteriorado. Consome-se lentamente e não há saídas para um progresso. Antigamente tida como centro de toda civilização e conhecimento, com o narrador de Eça de Queirós percebemos, entretanto, uma dicotomia campo x cidade que demonstram uma falha na cidade, ela não é mais capaz de solucionar seus problemas sociais.
O que é um paralelo interessante quando comparamos com os ideais utópicos do Cassino Lisbonense, de uma sociedade ativa, pensante, consciente dos problemas entre si, com uma comunicação harmônica entre os centros intelectuais. A Paris que Zé Fernandes descreve no romance é decadente.
Mas o campo tem a capacidade natural de, tal qual natureza que sempre se renova, florescer a capacidade humana. De fazer o homem ainda mais humano e não mais corrompido pelo cientificismo obsoleto e incapaz de ajudar o progresso.
A etimologia do personagem Jacinto na obra demonstra a grande maestria de Eça de Queirós. Como a flor da qual recebeu o nome, Jacinto sai da Paris sufocante e demasiadamente tecnológica, onde não se tinha propósito a não ser procurar futilidades, e migra para o campo, antiga casa de família herdada. Com os ares das serras do lugar, revigora as suas forças e seu entusiasmo pela vida, “florescendo” ali. Saindo do aspecto cavernoso e tornando-se homem viril, do aspecto de homem infeliz, mesmo sendo cercado por desenvolvimento e riquezas, Jacinto renasce nas serras portuguesas, como qual o Cristo ressurreto ou algum outro beatificado.
É a marca do passado evocado para, com esse imaginário, revitalizar o espírito português de autocrítica, “este romance é a mais clara expressão do permanente cepticismo tecnológico, científico, filosófico e teológico de Eça” (SARAIVA; LOPES, 2001, p. 885).


ENREDO

Uma das últimas obras de Eça de Queirós, o romance publicado em 1901 aborda a vida de Jacinto, fidalgo rico, nascido em castelo nos Tormes, região campestre portuguesa, mas morador do 202 nos Campos Elísios parisienses. Cidadão que preza pela tecnologia, conforto e luxo e que acreditava na equação que a “suma felicidade” se encontrava com a união entre “suma ciência” e “suma potência” (QUEIRÓS, 1995, p. 12), acreditava piamente na civilização como único meio de se alcançar o conhecimento e felicidade.
A história do chamado Príncipe da grã-ventura é contada por seu amigo, Zé Fernandes, homem do campo e sem visível interesse pela tecnologia capaz das mínimas e mais supérfluas ações. É simples e procura sempre medir o grau de tédio no qual seu amigo adentra e trazê-lo de volta com distrações e entretenimento.
A reviravolta do livro ocorre quando as ossadas de parentes antigos de Jacinto devem ser enterradas em outro lugar, já que a igreja onde descansavam ficara em ruínas devido a uma grande tempestade. É nessa viagem, desprovido de conforto ou luxo, praticamente dormindo ao relento e em contato direto com a natureza, que Jacinto muda. O deslocamento espacial translada seu espírito de modo que a felicidade é alcançada no campo, não pela favorecida cidade.
Segundo a crítica de Álvaro Lins, estudioso do autor, A cidade e as serras não tem enredo, “assegurando que é um livro de decadência, em que o enredo é inexistente e as personagens ‘de uma extrema miséria de vida’” (TOLOMEI, 2007, p. 5). Mas por que essa ferocidade? Porque, de fato, as ações do romance são mínimas, há maior força de análise, desenrolar do desenvolvimento das personagens e carga crítica na própria questão do espaço representado na obra que nas ações feitas por Zé Fernandes, Jacinto ou qualquer outro.
Mas o livro não é decadente per se, a “extrema miséria de vida” aludida pelo crítico é encontrada principalmente no espaço e ambientes urbanos: o caos, a ineficiência das máquinas embora a tecnologia devesse ser útil, o consumismo e visão estereotipada de uma elite econômica, os temas realistas/naturalistas incômodos do final do século XIX estão presentes em Paris.
Não que a mesmice e ignorância intelectual campesina esteja sendo valorizada por Eça de Queirós. Há a crítica ao conformismo campestre, da religião católica aceita como única verdade, o mito do sebastianismo ainda forte e a relutância em aceitar mudanças. Mas as mudanças são possíveis naquele ambiente, como é comprovada pela conversa entre Silvério e Jacinto na página 109 do romance:

– Bem, meu amigo... Eram uns seis contos de réis! Digamos dez, porque eu queria dar a todos alguma mobília e alguma roupa.
Então o Silvério teve um brado de terror:
– Mas então, Exmo. Senhor, é uma revolução! (QUEIRÓS, 1995)

            O Príncipe deixa então de ser aquele agraciado com a boa sorte e nesse momento torna-se o príncipe dos pobres, nobre fidalgo disposto a ajudar, modernizar e melhorar a região de Tormes, sua herança. Mesmo com as dificuldades, a ação é mais efetiva no campo, conquanto em Paris, com seus inúmeros contatos, Jacinto tinha dificuldade em atuar ativamente nos mínimos problemas cívicos, tudo encoberto por uma camada de gestos grandiloquentes e jantares, mas nenhuma ação efetiva nos problemas sociais. É essa capacidade de florescer e mudar que valoriza as serras em detrimento à cidade.
            Em Paris, os dois amigos caminhavam nos parques floridos, encontravam-se com a elite intelectual, militar, religiosa da cidade, conheciam tipos “indispensáveis” para uma civilização, debatiam filosofia a cada esquina, porém tudo com um vazio de realidade; debatiam e procuravam novas doutrinas para satisfazer o vazio da essência. Jacinto sucumbe finalmente ao pessimismo e essa era sua única alternativa enquanto vivesse no 202: sua juventude foi arrancada como por máquinas com toda estruturação falha citadina. Não conseguia mais viver sem sofrer e pensar sem sofrer. A chance de viajar para o campo e viver, mesmo a contragosto, sem todo o luxo julgado indispensável abriu seus olhos e permitiu-lhe entender o que era importante de fato e não sua localização (embora essa pudesse afetar).
            É quando se muda para as serras que encontra o prazer no progresso, quando o vê de fato acontecer, é nas serras que encontra paz, renasce e saúde, naquelas serras que se apaixona e casa.
            O romance se alonga por mais algumas páginas, o narrador Zé Fernandes volta à Paris, não sentindo nenhum deslumbramento pela cidade maravilhosa, a civilização de lá parecendo mais decadente. Mal passa alguns dias e se vê estafado com aquela pompa:

Finalmente abalei uma tarde, depois de lançar da minha janela, sobre o boulevard, as minhas despedidas à cidade:
- Pois adeusinho, até nunca mais! Na lama do teu vício e na poeira da tua vaidade, outra vez não me pilhas! O que tens de bom, que é o teu gênio, elegante e claro, lá o receberei na serra pelo correio. Adeusinho! (QUEIRÓS, 1995, p. 137)

            A ideia de que a civilização pode ser levada por correio é brilhante, hilária e com forte teor irônico, Paris, aparentemente, atinge um ponto limítrofe de superficialidade que arrasta para lama toda possibilidade de progresso e melhoria mas a sociedade corrompida pode ser expurgada e a serra conduz novo feitio de progresso.
            É na parte espacial do campo, por exemplo, que encontramos as pessoas dotadas de bondade. Na cidade, cada personagem possuía uma característica da destruição humana, porém no campo, as próprias características físicas mostram o simbolismo da pessoa boa. 
            Após o casamento entre Jacinto e Joaninha, prima do narrador, e depois que Zé Fernandes volta para Tormes, “para o castelo da Grã-Ventura” (QUEIRÓS, 1995, p. 138), vemos a grande finalização do romance: Paris renegada e as serras apontando para uma imagem de salvação.

Constatou-se, nesse percurso através da crítica queirosiana de Álvaro Lins, que ele não mediu palavras para atacar ou elogiar os textos de Eça, daí a tendência impressionista de suas leituras críticas. Em geral, o crítico conseguiu apresentar ao seu leitor o caráter harmônico da obra queirosiana entre o que é humano e o que é artístico, revelando que o “socialismo” de Eça “foi muito mais um sentimento do que uma idéia” (TOLOMEI, 2007, p. 5)

            Então não fica apenas a moral e a sugestão de que o trabalho exaustivo da Ideia traz a civilização e progresso, fica a impressão, para usar das palavras do crítico, que o autor consegue impactar em seu leitor, a associação entre sentimento e ideia para mudar o mundo. É a suavização da visão crítica realista, mas a prova de que perceber a sociedade e melhorá-la é possível.
            Em relação ao enredo, ademais, faz-se necessário mencionar que “A Cidade e as Serras” como livro póstumo não teve a revisão devida que seu autor provavelmente quereria. Assim, a partir da página 89, das 139 páginas da obra, foram amigos de letras de Eça de Queirós que finalizaram o romance do modo como melhor conseguiram.
            Pela crítica genética, lembramos que “A Cidade e as Serras” fora um prolongamento do conto “A Civilização” então o enredo não foi atingido drasticamente, mas as últimas visões críticas das personagens podem ter sofrido alteração, embora tenham sido claras na sua voz.
            A parte não revisada da obra, pela edição da Formar, concentra-se no desenvolvimento de Jacinto meio ao campo, seu casamento com Joaninha, as melhorias tecnológicas no campo e a última viagem de Zé Fernandes para comprovar como este encontra a felicidade no campo e não na cidade, apesar de todo entretenimento.

O TEMPO E O ESPAÇO – UMA RELAÇÃO DO HOMEM E O ESPAÇO

A história passa em Paris, e nas serras de Portugal. A narrativa se passa no século XIX, quando Paris é considerada a capital da Europa e o centro mundial. A despeito disso, Portugal se mantinha como um país agrário e atrasado. Nessa análise do espaço na obra, queremos desfazer a dicotomia de que cidade significa apenas o progresso e a vida no campo apenas um lugar bucólico e sem atrativos duradouros. Queremos mostrar que a face da modernidade cobra seu preço física e psiquicamente no homem e que a vida no campo pode ser também, um lugar onde acontecem mudanças e renovação do indivíduo.
Sobre o tempo psicológico das personagens, Soares (2007 p. 51) nos fala sobre um “tempo interior”, para tanto utilizados recursos como “o monólogo interior”, apresentando o que há de mais íntimo na personagem, podendo ser para expressar dor, espera, angústia... Sobre o espaço, ela ainda continua, como sendo “ambiente, cenário ou localização, o espaço é o conjunto de elementos da paisagem exterior (espaço físico) ou interior (espaço psicológico), onde se situam as ações das personagens”. (Soares, 2007 p. 51-52).
No entendimento de Lins (p.76) citado por Dimas (1985 p. 20), temos a seguinte definição de espaço e ambientação: “... Entenderíamos o conjunto de processos... a provocar na narrativa a noção de um determinado ‘ambiente’. Para aferição do espaço levamos a nossa experiência de mundo; para ajuizar sobre a ambientação”.
Dimas, ainda continua em suas palavras:

O romance realista, na verdade, é exímio em oferecer pistas colaterais, referentes ao espaço, que nos permitem acompanhar a trajetória das personagens de forma a não prestar atenção exclusiva à ação. Com a evolução das formas narrativas, deixou-se de privilegiar a ação o espaço, o tempo ou o personagem para se procurar uma integração mais harmônica das partes constitutivas do romance. (Dimas, 1985 p. 56).

Ainda sobre o tempo psicológico, temos Mendilow (1972 p. 131), que nos diz a respeito: “Para medir-se o tempo, deve-se levar em conta outro padrão, o interior ou psicológico que envolve a estimação do tempo através de valores individuais”. Nesse sentido, podemos afirmar que esse tempo interior de percepção, trata-se das impressões das personagens que depende de valores que variam a todo o momento, ao contrário do tempo exterior que depende apenas de padrões fixos. Se pudéssemos imaginar cada personagem com um relógio interno que medisse o tempo interior, certamente, cada um deles estaria funcionando numa hora especifica. Seria impossível todos estarem numa mesma sincronia, dadas as experiências pessoais de cada um que moverá as impressões particulares de cada um. São as circunstâncias que determinarão o tempo psicológico de cada personagem que vai muito além do cronológico. Pode-se então concluir que cada indivíduo possui consigo sua própria maneira de percepção do espaço e do tempo. “Dentro de cada período este valor varia inversamente, conforme visualizaremos aquela unidade desde o ponto de vista do passado ou do futuro” (Mendilow, 1972 p. 133).
Quando, na obra, Zé Fernandes pergunta ao criado Grilo, por que Jacinto andava tão “murcho”, o outro logo responde: “É fartura!” (Queirós, 2007 p. 80) Ou seja, nem toda a dinâmica da cidade estava por “sufocar” Jacinto que vivia a bufar: “que maçada!”. O tempo para Jacinto, nesses momentos em que se sentia entediado, não passava, ou parecia escorrer lentamente, quase lhe causando sofrimento, já que nada era capaz, em Paris, de fazê-lo sentir-se completo por muito tempo. Quanto a isso temos:

Prestamos mais atenção à passagem do tempo do que o usual, porque estamos mais ansiosos do que usualmente para que ele passe, porque temos pouco mais de que nos ocuparmos ou pouco mais em que possamos fixar a nossa mente. E, já que prestamos tanta atenção ao tempo em um curto período como o faríamos usualmente em um período mais longo, julgamos que o período seja mais longo do que é. (Mac Taggart, 1921, Vol II, P. 277, apud, Mendilow 1972, p. 134).

Diante dessas apreciações teóricas, percebemos que o espaço é muito mais do que uma categoria de análise, mas é uma condição básica e inseparável da trama. Para entendermos a proposta de Eça ao criar As Cidades e as Serras, precisamos contextualizá-la no seu tempo, contextualizando a obra no espaço, pois, não há tempo fora do espaço e vice versa. Contextualizar a obra, no caso aqui referido, trata-se de enxergar a obra na esfera da estrutura da sociedade em que se desenvolve a vida das personagens. É nesse espaço que as personagens passam a imprimir e transformar a sua existência, por meio de seus valores, tornando assim o espaço inseparável das experiências e condição do Ser. Estar num determinado lugar, espaço ou cultura é muito mais do que apenas residir ali, mas se fundir com esse universo, passando esse espaço a ser parte do próprio indivíduo. Na obra, pode-se afirmar que as características tanto da cidade como da vida nas serras são exploradas junto com as experiências das personagens.
Essa relação do homem com o meio em que vive, deve levar em conta a questão do individuo vivendo num espaço e transformando-o, por meio dos seus sentimentos e planos, que o leva a uma ação, num ciclo que não para de se renovar, justamente por causa dessas ações que o indivíduo se sente impelido a produzir no espaço. “... A organização e o sentido do espaço são produtos de translação, da transformação e da experiência sociais”. (SOJA, 1993, p. 101).
Cada indivíduo existe num determinado ambiente onde se reconhece ou não, modificando-o, agindo sobre ele, seja positiva ou negativamente, sendo o lugar e o indivíduo inseparáveis, pois o indivíduo sempre estará fazendo parte de algum espaço enquanto Ser, enquanto existir. Faz parte da existência humana se reconhecer pertencente ou não num determinado espaço. A obra traz muito fortemente essa questão de lugar e para isso Silva (1986, p. 55) nos diz: “... O lugar é algo que sugere alegria ou solidão, nostalgia ou tensão”. Percebemos na obra que os lugares são os mesmos, mas as personagens não permanecem as mesmas, ocorrendo então as várias modificações de visão, de percepção e essência de cada uma delas, ante a realidade.
Essa obra de Eça mostra o desencanto do autor com a falta de avanço social em Portugal, alimentado pelo seu desejo de mudanças e modernidade, como também, já nessa terceira fase em que o autor está novamente fazendo as pazes com Portugal, a obra também mostra a revalorização da vida interiorana.
Eça consegue mostrar os ares de uma época onde nascia uma nova metrópole, que recebia constante influência de toda a Europa, especialmente de Paris, em contraposição com outro espaço que é o das serras, onde aparentemente a influência das inovações tecnológicas e pensamentos modernos ainda não alcançaram tal ambiente. Um lugar intacto, não corrompido de civilização.
Paris era a grande metrópole ditatorial do século XIX, reconhecida por todos os seus avanços que refletiam modernidade e cientificismo, mostrando que em geral havia sob essas modificações, um olhar positivo de mudança diante do futuro, era motivo de alegria viver nesse tempo de tão incríveis mudanças que traria tantos benefícios a toda a humanidade. “Suma ciência mais suma potencia igual à suma felicidade... o incivilizado não suspeita e de que está privado” (Queirós, 2007, p.20) Ainda assim, Jacinto parecia não se sentir completo, mesmo rodeado de todo o fluxo de desenvolvimento técnico e científico que aquele século lhe oferecia. A Ciência só parecia lhe trazer uma pseudo felicidade, muito fugaz que logo se dissipava e o fazia mergulhar num novo mar de tédio. Ainda mais quando percebia gradualmente que nada parecia ser perfeito, funcionar perfeitamente, como uma sutil denúncia de que não era a modernidade e todas as suas comodidades que trariam a completa satisfação. A conquista da ciência estava atrelada à felicidade, mas Jacinto passou a não sentir suficiência em tudo isso. Faltava-lhe algo mais, algo que ele não sabia o quê.
O próprio encanto de Zé Fernandes diante da grande capital é fugaz, mesmo envolvido pela grande importância dada por Jacinto a todas as máquinas novas que possuía e que representavam a modernidade do século, logo Zé Fernandes vai percebendo o alto preço que o progresso cobra, numa rotina que parece sugar todos que a ele se entregam. Seu próprio amigo Jacinto parecia literalmente sugado, perdendo as forças físicas para a modernidade, algo que lhe consumia quase todo o tempo. O ritmo da vida na metrópole parecia afligir Jacinto grandemente, o estresse, diante de um espaço que parecia criado para esmagar a todos com sua opulência e imponência. Os afazeres metropolitanos tomam a todos que vivem nas metrópoles e os consomem quase que compulsoriamente, as pessoas já não possuem tempo para mais nada. Mesmo sendo uma obra do final do século XIX, percebemos que a nossa experiência de realidade não é muito diferente da retratada no espaço metropolitano pelo autor.
Jacinto, mesmo sentindo-se cada dia mais vazio, ainda apega-se a uma Ideia de pertencer a uma elite que existe para fomentar o desenvolvimento, trazer o progresso, ainda percebendo que todos esses esforços o consomem quase que completamente, fazendo-o viver enfadado, estressado e aborrecido. Quanto a isso, Zé Fernandes diz: “... porque sou bom, sempre me entristece o desmoronar de uma crença... o denso formigueiro humano sobre o asfalto... afligia o meu amigo pela brutalidade de sua pressa” (Queirós, 2007, p. 38). Revelando em seu comentário a percepção de que o espaço da metrópole emparedava o ser humano, sujeitando-o a uma vida triste e árdua: “só tijolo, só ferro, só argamassa... tudo seco, tudo rígido... Comendo os muros, as tabuletas...” (Queirós, 2007, p. 42). Zé Fernandes já  havia experimentado o espaço acolhedor das serras e podia com propriedade fazer críticas ferrenhas à dureza mostrada pela cidade dita como “moderna”, que se erguia todos os dias a custo do suor e sofrimento de milhares de pobres, de miseráveis, para manter o luxo de alguns poucos, como o seu próprio amigo Jacinto, fato que percebemos nesse trecho:

E um povo chora de fome dos seus pequeninos – para que os jacintos em janeiro, debiquem, bocejando sobre o prato de saxe, morangos gelados em champagne e avivados de um fio de éter!
_ Eu comi dos teus morangos, Jacinto! Miseráveis tu e eu!
...
_ É horrível, comemos desses morangos... E talvez por uma ilusão!”                                                            (Queirós, 2007, p. 89).

Fica clara a percepção de Zé Fernandes de que são os esforços daquele povo sofrido e humilde que mantém o luxo de poucos como Jacinto, tornando a cidade um espaço opressivo para alguns que vivem para criar o deleite de outros, bem como a cidade, em sua outra face, poderia ser essa cama macia para os poucos que possuíam o poder nas mãos, gerando um espaço cada vez maior para os ricos, em detrimento da marginalização dos pobres. Era a convivência de dois mundos desiguais. Essa desigualdade se faz presente especialmente de modo espacial, onde a cidade se alargava para dar mais espaço aos ricos, pondo à escanteio, na periferia, cada vez mais, o pobre.
Talvez tenham sido essas percepções da realidade para Eça, que o tenham feito nessa sua terceira fase, uma mais amena, com um olhar mais suavizado sobre Portugal, tê-lo feito querer fazer as pazes com seu país novamente, percebendo quão distante estavam os ideais que tanto motivaram em suas conferências, da verdadeira realidade em que a cidade e o povo estavam mergulhados. O caos da desarmonia social.  “Na turba dos humanos é a angustiada luta pelo pão, pelo teto, pelo lume, numa casta agitada por necessidades mais altas, é a amargura das desilusões, o mal da imaginação insatisfeita, (...) – Eis a vida!” (Queirós, 2007, p. 103).
Outro trecho ainda nos afirma:

...Cada manhã (...) impõe uma necessidade, e cada necessidade o arremessa para dependência; pobre e subalterno, a sua vida é um constante solicitar, adular, vergar, rastejar, aturar; (...) Alegria como haverá para esses milhões de seres que tumultuam na arquejante ocupação de desejar – e que, nunca fartando o desejo, incessantemente padecem de desilusão, desesperança e derrota? Os sentimentos mais genuinamente humanos logo na cidade se desumanizam! (Queirós, 2007, p. 46).

Cada ação e reação no espaço da cidade constituem outras variadas demandas, que por sua vez, gera outras tantas mais, escravizando todos no tempo e no espaço. Um ritmo de vida que o homem é obrigado a se adaptar para continuar vivendo, ou sobrevivendo; gerando um desgaste não apenas físico, mas psicológico, recaindo assim a critica do autor, sobre a capacidade das metrópoles de esgotar o indivíduo, não oferecendo opções de renovação, mas, antes, sugando-lhe toda a energia. Jacinto vai percebendo isso gradualmente, algo que se reflete no seu físico e logo consome também o seu espírito, sua mente, ficando “doente” a intensidade e ritmo frenético da cidade. “Sofrer é inseparável de viver”. (Queirós, 2007, p. 103). O progresso não é mais o essencial alimento da mente humana. É preciso novos ares, um novo espaço.
A serra, em contrapartida, é o ritmo contrário, onde tudo flui, ainda que com seus percalços, e os percalços são incentivos para melhorar, para que Jacinto use seus conhecimentos adquiridos numa vida cosmopolita, buscando assim um equilíbrio entre o moderno e o campo. O espaço do campo requer mudanças em outro compasso, nada de pressa e até na rudeza do lugar é possível encontrar beleza, o que vai encantando Jacinto gradualmente. É a troca de valores, Jacinto experenciando uma nova vida longe das preocupações da metrópole, das futilidades e sobressaltos da cidade. Encontra uma nova forma de viver que nem sabia existir.
No espaço da cidade, a natureza é fragmentada, dividida em alguns pequenos parques espremidos entre prédios, que parecem passar uma mensagem de que o homem não deve passar muito de seu tempo por lá, mas deve voltar aos seus afazeres. Nas serras, a natureza se encontra íntegra, é motivo para admiração constante, desperta a sensibilidade do espírito.
 O encantamento de Jacinto com o espaço das serras o faz mudar o foco de vida, o faz transformar esse novo ambiente, esse novo espaço em que está inserido. Segundo Soares (2007), a autora afirma que o espaço é fundamental, pois não serve apenas como pano de fundo, mas influencia de forma direta no desenvolvimento do enredo, unindo-se ao tempo. Esse pensamento vai de encontro ao de Zola, convicto de que o ambiente é capaz de “modelar” e “determinar” a condição humana.
O encantamento da personagem Jacinto com o espaço das serras vai além da beleza explícita do lugar, mas tem haver com um reencontro do indivíduo com o próprio ser. Surgem nesse meio tempo novas emoções, a noção de família, tanto ao revitalizar os túmulos dos parentes, quanto ao formar uma nova família, alargar os laços com novas amizades, ajudar a população carente tirando proveito do que a “civilização” lhe dera. Era o homem se conectando ao espaço e vice-versa. Jacinto encontra na vida um novo significado para viver. A serra não tinha tanto valor apenas pela natureza que exprimia, mas pelos sentimentos que fizera desenvolver na personagem, que antes, no espaço anterior da cidade, não existiam.
 A família de Jacinto sai das serras para a cidade e Jacinto fecha o ciclo fazendo o percurso contrário. Era o indivíduo como agente transformador do meio em que habita e como agente de si próprio; e o meio, agente transformador do homem.
Jacinto não abandona totalmente o homem da cidade que vive dentro de si, mas o readapta às novas condições de espaço, transformando-se assim, na figura fundamental de equilíbrio que une tempo e espaço.

O FOCO NARRATIVO NO ROMANCE

Em “A cidade e as serras”, a narração se dá em primeira pessoa do singular, como já anteriormente o dissemos, por Zé Fernandes, natural das serras de Guiães, zona campestre de Portugal. Amigo íntimo e familiar do pretendido protagonista de sua história, Jacinto, portanto narrador personagem, participante e presente em toda a obra.
Esse narrador nos direciona às suas observações e às suas impressões, visto que é por meio de seus olhos que vemos o desenrolar dos fatos, em todos os seus aspectos.
O estilo de narração é de uma linguagem que se pudesse mostrar natural, de acordo com a intelectualidade das personagens que falam, o contexto histórico e o espaço das cenas. Assim sendo, nas vozes de Zé Fernandes e de Jacinto observamos o uso demasiado de estrangeirismos, em inglês <<passeio de mail-coach>>, francês <<Monseigneur est servi!>> e até mesmo latim <<Vanitas Vanitatum>>, mas que não estão ali por acaso, mas para refletir a intelectualidade, erudição e instrução dessas personagens em foco, sobretudo quando estão entre nobres na mansão de Jacinto, em Paris. Em outras ocasiões, seja em conversas íntimas entre si ou em conversa com e caseiro de Tormes (ele dizia sua incelência), vemos que esse estrangeirismo diminui, dando lugar à coloquialidade e à informalidade do falar.
Eça, como traço estilístico próprio de suas obras, traz nesta A cidade as serras também a minuciosa descrição dos cenários e das expressões faciais e corporais das personagens, com o desejo de apreender e expor cada sublime detalhe, como numa pintura realista, a importância de cada pincelada. No tocante à linguagem, ele a usa recheada de figuras de linguagem para assim determinar um estado de espírito ou de fisionomia em que, em determinado momento, se encontra um personagem.
 As mais frequentes figuras de linguagem empregadas são:
A metáfora, que consiste em empregar uma palavra num sentido que não lhe é comum ou próprio, numa relação de semelhança entre dois termos, em junção com
            A hipálage, que tem por objetivo conferir maior expressividade ao discurso:  <<arrastou pelo tapete alguns passos pensativos e moles>>; <<é um perfume muito agudo e petulante que uma mulher larga ao passar>>; <<pensei na minha aldeia adormecida>>
A comparação: <<meu pobre jacinto, numa aplicação conscienciosa, pendia sobre o Teatrofone tão tristemente como sobre uma sepultura>>
A ironia: <<agora, porém, bendito Deus, na convivência de um tão grande iniciado como Jacinto, eu compreenderia todas as finuras e todos os poderes da civilização>>
A onomatopeia: <<Sei recuperaste Grilo e Civilização! Hurrah!>>, como também o uso do discurso indireto livre e expressões coloquiais que expressam sentimentos como: << uma maçada!>> e <uma seca!>> de jacinto e <ah, caramba!>> de Zé Fernandes.

PERSONAGENS

As personagens de As cidades e as serras são típicas e planas. De um modo geral, duas merecem destaque:
Jacinto, o protagonista do romance, nascido e criado em Paris. O gosto pelas tecnologias lhe é intrínseco, demonstra ser um homem de alto nível de erudição e “civilização”. No início do romance o personagem diz ser impossível ser civilizado fora do ambiente urbano e de seus aparatos tecnológicos. Sua vida segue um roteiro que ousamos dividir em três momentos: o primeiro caracteriza-se pelo horror ao campo que, segundo ele, embrutecia e bestificava o ser humano; o segundo é marcado pela negação da cidade e pela valorização do campo; o terceiro, pela busca do equilíbrio entre a vida simples do campo e algumas conquistas da civilização.
Zé Fernandes não é apenas um narrador que se dedica a contar uma história, é também uma personagem. E não uma qualquer, mas uma que deleita de laços bem estreitos com o protagonista Jacinto. É por meio dele que temos visibilidade e por meio do qual somos apresentados às personagens, seus conflitos e seus pensamentos.
O personagem serrano é dotado de um afeto que parece ultrapassar os limites da amizade, mas sem indicar um comportamento obsessivo ou vulgar, e sim fraternal. Isso se evidencia pela forma de tratamento <<Meu Príncipe>>, pela intimidade que tinha com Jacinto, em adentrar seu quarto, o ver em seus banhos, a pentear-se, a vestir-se; a forma como comungava de seus bens (no 202 de Paris  dormia na cama do avô D. Galeão, lugar de estima e honra), em cear e tratar os funcionários de Jacinto como que seus também etc.
No tocante ao significado de seu nome, Zé Fernandes cuja etimologia da palavra é “fernandéz”, estabelece relação com “fernandézia”, um tipo de orquídea, que são flores sobretudo bem resistentes e que sobrevivem a ambientes diversos. Tanto que pode ser encontrada em todos os continentes, exceto Antártida. Esta relação com o nome do amigo de Jacinto pode explicar e dar suporte à sua fácil adaptação ao campo de singelezas de Tormes e Guiães e à cidade tão civilizada e requintada, cheia de confortos – Paris!
Os personagens do campo: Silvério (administrador da propriedade de Jacinto; Vicência (tia de Zé Fernandes); Joaninha (esposa de Jacinto e prima querida de Zé Fernandes); Jacintinho e Teresinha (filhos de Jacinto); Melchior (o caseiro de Tormes) e outros criados e trabalhadores da propriedade serrana de Jacinto, aparecem como personagens típicas e planas, exemplificando a vida simples e às vezes pobre do campo, ou exaltando o sentimento e bons ares das serras, em supremacia à cidade cinza de civilização, no quesito bem-estar, bem-viver.
 As personagens ligadas à vida de Jacinto em Paris são vistas de forma caricata. O narrador acrescenta-lhes sempre um traço ridículo com a finalidade de criticá-las.            Podemos enxergar como resumo do tipo social representado pelo núcleo parisiense o seguinte trecho:

“Há os Efrains, Os Trèves, os vorazes e sombrios tubarões do mar humano, só abandonarão ou afrouxarão a exploração das plebes, se uma influência celeste, por milagre novo mais alto que os milagres velhos, lhes converter as almas.” (QUEIRÓS, 1995, p. 52)

O CONTO “CIVILIZAÇÃO”

No conto “Civilização”(1892) que deu origem ao romance A cidade e as serras, temos um confronto entre a cidade e o campo. A dicotomia apresenta-se através de dois grandes momentos da obra: no primeiro Jacinto está na cidade, rodeado de tecnologias e de livros; no segundo momento o protagonista está no campo, desprovido dos requintes aos quais estava acostumado.
Para melhor organização da análise do conto desenvolvemos na seguinte ordem de pensamento: ação, tempo, espaço e foco narrativo. Feita a análise confrontaremos algumas passagens julgadas interessantes que se dão tanto no conto Civilização quanto no romance A Cidade e as serras, desenvolvidos de formas diferentes, bem como outros detalhes que não poderiam passar despercebidos.
Iniciaremos pela ação, que se dá internamente e externamente. Em alguns momentos o narrador recorda fatos: essas lembranças constituem a ação interna.           Já a ação externa detém-se nas coisas materiais: o jasmineiro com vários cômodos, biblioteca, sala de banho, entre outros; o velho solar de Torges; e a estação de trem, todos os atos que movimentam a narrativa.
O tempo é o segundo ponto importante para ser observado, bifurca-se em dois âmbitos: o tempo cronológico (no início do conto Jacinto contava vinte e oito anos, no desenvolvimento aparece-nos com trinta anos, apresenta-se, também, a mudança da estação do ano “depois desse inverno... sucedeu que Jacinto teve a necessidade moral iniludível de partir para o norte...”) e o tempo psicológico (consiste no fato da história ser narrada por alguém que a conhecia e que a tinha vivido, o narrador tem conhecimento de todos os detalhes e fatos).
            Quanto ao espaço provém uma passagem do ambiente da cidade, com todas as suas tecnologias e facilidades, para um ambiente totalmente diferente, o campo, ambiente rústico, desprovido de conforto, no entanto aconchegante e indiscutivelmente belo.  A descrição do espaço feita por Eça é imagética, a riqueza de detalhes dá-nos a sensação de estarmos dentro do cenário.
            No tocante do foco narrativo, vemos que o conto é narrado em 1ª pessoa do singular e no pretérito, trata-se de um narrador personagem, no entanto como é um personagem secundário vemo-lo como testemunha.
O romance “A cidade e as serras” mantém pontos importantes encontrados no conto, tais como o nome do protagonista – Jacinto, com a dicotomia cidade x campo, observa o tédio frente ao excesso de tecnologias e a aversão inicial do protagonista ao campo.   No entanto, em se tratando de modos narrativos, o conto e o romance diferem em sua estrutura, desenvolvimento, ação, tempo, foco narrativo.
Comparando a questão do tempo nos dois modos narrativos vimos que no conto o autor desenvolve o tempo cronológico e o psicológico, já no romance temos apenas o cronológico. É interessante a transmutação do tempo psicológico para o cronológico observado quando as lembranças de José, no conto, acontecem no presente do narrador Zé Fernandes, no romance.
Algumas recordações infelizes lembradas no conto parecem-nos risíveis quando narradas por José, por exemplo, o episódio do fonógrafo que nos é introduzido com leve sarcasmo:

Constantemente sons curtos e secos retiniam no ar morno daquele santuário. Tic, tic, tic! Dlim, dlim, lim! Crac, crac, crac! Trrre, trrre!... Era o meu amigo comunicando. Todos esses fios mergulhavam em forças universais. E elas nem sempre, desgraçadamente, se conservavam domadas e disciplinadas!
(...)
Pois, numa doce noite de S. João, o meu supercivilizado amigo, desejando que umas senhoras parentas de Pinto Porto (as amáveis Gouveias) admirassem o fonógrafo, fez romper do bocarrão do aparelho, que parece uma trompa, a conhecida voz rotunda e oracular:

Quem não admirará os progressos deste século?

Mas, inábil ou brusco, certamente desconcertou alguma mola vital – porque de repente o fonógrafo começa a redizer, sem descontinuação, interminavelmente, com uma sonoridade cada vez mais rotunda, a sentença do conselheiro:

– Quem não admirará os progressos deste século?

Debalde Jacinto, pálido, com os dedos trêmulos, torturava o aparelho.
(Queirós, Civilização) [grifos nossos]

Outro momento trágico, a inundação devido à torneira dessoldada, nos aparece, também, de forma cômica:

Nunca eu, para molhar os dedos, me cheguei àquele lavatório sem terror – escarmentado da tarde amarga de Janeiro em que bruscamente, dessoldada a torneira, o jacto de água a cem graus rebentou, silvando e fumegando, furioso, devastador... Fugimos todos, espavoridos. Um clamor atroou o Jasmineiro. O velho Grilo, escudeiro que fora do Jacinto pai, ficou coberto de empolas na face, nas mãos fiéis.
(Queirós, Civilização) [grifo nosso]

Nos trechos classificados como risíveis percebemos que esse efeito ocorre devido ao narrador que ironiza constantemente as tecnologias presentes no palácio de Jacinto, alude aos problemas para questionar a necessidade dos aparatos que parecem extrair a vitalidade de seu amigo, notado na fala “nunca me recordo sem assombro a sua mesa [...] eu por vezes surpreendi gotas de sangue do meu amigo”.
Há momentos em que ficamos em dúvida se o Jacinto do conto é o mesmo do romance por conta de alguns detalhes divergentes: no conto, Jacinto é herdeiro de uma fortuna de quarenta contos, não sabemos onde nasceu, teve seu berço cuidado pela mãe, decidiu inesperadamente ir para o campo, a Quinta de Torges, o procurador e o caseiro chamam-se, respectivamente, Sousa e Zé Brás; já no romance a fortuna era bem maior, Jacinto nasceu em Paris, sua avó quem espalhou funcho e âmbar em seu berço, muito a contra gosto vai para o campo resolver o problema dos ossos de seus antepassados, a cidadezinha do campo chama-se Tormes, o nome do procurador é Silvério e do caseiro Melchior. Apesar das diferenças citadas preferimos entender que “os Jacintos” são a mesma pessoa devido às inúmeras semelhanças ao longo do texto.

CONCLUSÃO

            O que vimos após análise tanto do conto quanto do romance é que, num de seus últimos textos, Eça de Queirós preza pela capacidade de refletir o mundo problemático à sua volta e agir sobre ele. Diferentemente das primeiras fases iniciais de sua carreira, essa ação, crítica e até o julgamento causado pela sanção social é mais sensível se comparado com sua estreia com o “Primo Basílio”, as personagens não morrem ou vivem na miséria.
            É ainda pior o destino daqueles que se recusam a funcionar bem em sociedade: definhar no decadentismo e superficialidade do mundo. Sem função ou base em que se firmar, a solução não é fácil de se encontrar, mas há um grupo de boas almas e incorruptas pela noção de cidade, e naquele espaço, a civilização, sem as hierarquias políticas, mas em vias de se tornar liberal e justa, numa ajuda comunitária, o progresso ocorre.
É essa região real, mas com característica quase utópica, que devemos observar, não contaminada pelas ideias progressistas e desejando o progresso, o paradoxo é reflexivo e engajado. Os temas principais são solucionados, a desumanização e indiferença da cidade e dos cidadãos encontra margem e resolvem-se no campo, sob a tutela do Príncipe de Tormes. As críticas, mais suaves, sobre os tipos campestres e a beatice ou falta de conhecimento intelectual não são motivos de escárnio, mas sim nova tela para se construir conhecimento útil e necessário para influenciar no mundo.
Saindo do Realismo de tese, dos excessos e das críticas severas, nas serras do romance podemos efetivamente agir e melhorar o espaço e o mundo. O saudosismo também é uma parte importante do processo analítico, é essa saudade quando as coisas funcionavam que precisamos resgatar.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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LINS, Osman. Lima Barreto e o espaço romanesco. São Paulo: Ática, 1976. (Coleção Ensaios, 20).

LOUREIRO, Roberto. A TRILOGIA DO ÚLTIMO EÇA. Disponível em: <<http://www.pgletras.uerj.br/palimpsesto/num8/dossie/Dossie_RobertoLoureiro.pdf>>. Acesso em 15 abr. 2013.

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