Antonio Patrício, profundamente tocado pelo simbolismo, conseguiu realizar essa grande obra que é Pedro o Cru. Numa escrita dinâmica, busca revelar toda a característica peculiar da estética dramatúrgica dessa época, no teatro português. As cenas longas e difíceis não se tornam enfadonhas, uma vez que o autor sabe usar com maestria sua capacidade de transformar o poder da palavra em um espetáculo.
“Diz D. Pedro com o cadáver de Inês nos braços: "cheiras a podre… saboreio o teu cheiro como um corvo…melhor que o das rosas que me deste (…) estou certo que os vermes mesmo se arrastam no teu corpo com doçura…"
“Diz D. Pedro com o cadáver de Inês nos braços: "cheiras a podre… saboreio o teu cheiro como um corvo…melhor que o das rosas que me deste (…) estou certo que os vermes mesmo se arrastam no teu corpo com doçura…"
por Daisy Melo (Unquiet).
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António Patrício (1878-1930) nasceu no Porto e faleceu em Macau.
Frequentou a Escola Naval, em Lisboa, formando-se depois em Medicina no
Porto. Após a proclamação da república é nomeado cônsul na Coruña,
Espanha. Exerceu depois funcões diplomáticas no Cantão, Manaus, Bremen,
Atenas, Istambul; Caracas, Londres, etc. Faleceu a caminho de Pequim
quando ia tomar posse como ministro. António Patrício sofreu influências
do Simbolismo e do Decadentismo. Notabilizou-se no teatro, em especial
nas obras de carácter histórico. Obras poéticas: Oceano (1905), Poesias
81942), Poesias Completas (1980). Teatro: O Fim (1909), Pedro, o Cru
(1913), Dinis e Isabel (1919), D. João e a Máscara (1924). Ficção: Serão
Inquieto (contos, 1910).
fonte: http://www.jayrus.art.br/Apostilas/LiteraturaPortuguesa/Simbolismo/Antonio_Patricio_Pedro_o_Cru.htm
Escritor
e diplomata português, natural do Porto. Frequentou a Escola Naval,
acabando no entanto por se formar em Medicina, em 1908. Proclamada a
República, foi cônsul na Corunha, em Cantão, Manaus, Bremen e outras
cidades, vindo a falecer pouco depois de nomeado ministro de Portugal
em Pequim.
Como
escritor, convergem em António Patrício tendências simbolistas,
decadentistas e saudosistas, a que se alia a influência do niilismo de
Nietzsche, nomeadamente na recusa de uma finalidade da vida exterior à
própria vida. Esta concepção, alheia à metafísica, conjuga-se com um
certo panteísmo, na vivência de cada momento perante a omnipresença da
morte (a obsessão dos corpos cadavéricos, por exemplo), numa intensa
espiritualidade que se manifesta em motivos como a saudade e as
contradições e dualismos do homem (finitude e infinitude, carne e
espírito, insaciabilidade do donjuanismo), na ânsia nostálgica de
absoluto, por exemplo, no amor. Esta tensão trágica é servida por uma
escrita de profunda sensibilidade e ritmo poético, numa linguagem de
forte carga musical e imagística que o aproxima do simbolismo.
fonte: http://www.antoniomiranda.com.br/iberoamerica/portugal/antonio_patricio.html
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PEDRO, O CRU
(Extracto)
PEDRO, com uma doçura imensa.
–
É a nossa hora, Inês... Estamos sozinhos. Estás bem assim!? Tu ouves-me
dormindo. Eu fico aqui, à tua cabeceira. Não bulas, meu amor, dorme
assim queda – como a tua estátua ali, sobre o teu túmulo... Esta é a
Casa de Deus. Deus está connosco. Ouves os sinos repicar!?... Toca a
noivado. As nossas bodas agora – são eternas. Sinto na minha alma a tua
alma – como a água d'uma fonte n'outra fonte, como a luz na luz, e Deus
em Deus... Sinto-te tanto, que te perco em mim. Aqui me tens, Inês: sou o
teu Pedro. O que ele tem, o que ele tem pr'a te contar!... Eu bem sei
que tu sabes... sabes tudo. Os teus ouvidos, na Morte, ouvem melhor.
Ouviram o desespero do teu Pedro – uma noite de pedra sobre esta alma –
ouviram as suas lágrimas caladas: ouviram toda, toda a sua dor. Eu
sei... eu sei... As palavras, por si, dizem bem pouco; mas acordam a
alma, meu amor. Se não fosse assim, pr'a quê!?... falar... Fala-se pr'a
cair no teu silêncio – no silêncio em que a alma sorri toda... O teu
Pedro quer falar: deixa-o dizer... Ouve-o como mesmo adormecida, tu
ouvias a fonte do jardim, do jardim das oliveiras meigas, do teu "jardim
das Oliveiras", meu amor. (Pausa) É o primeiro serão da eternidade.
Lembro a face da terra em que te amei. Vejo os campos de Coimbra ao
luzir d'alva... Eu Vou partir pr'a montear... digo-te adeus... As rolas
cantam perto – muito triste – no pinhal vizinho, que as entende... O
Mondego, ainda a dormir, já corre... O último beijo que me deste em
Vida, foi n'uma hora assim: caiam folhas... Os pomares ofereciam-se –
doirados... Quando fecho os meus olhos, Vejo-a sempre: dir-se-ia que
forra as minhas pálpebras. Foi n'essa hora que eu nasci pr'à dor: foi na
hora sagrada em que morreste, que a minha alma nasceu pr'a te adorar.
Até à tua morte – eu só te amava. Disse-me Deus, Inês, que me perdoaste.
E eu sinto o teu perdão dentro do peito – como se o abrisse pr'ó luar
entrar... Quero dizer-te desde essa hora, a minha vida: - ressuscitavas
tu quando eu nasci. O nosso amor, amor, ainda era pouco. Só abraçado à
morte ele inicia: só a Saudade revela, sabe a Deus. Oh! Os meus dias...
os meus longos dias – dias de hiena triste, a sonhar sangue... O teu
Pedro quer mostrar-tos pr'a que os beijes: – e serão puros na Saudade,
como tu . (Com uma expressão dolorosíssima) Mil Vezes, minha Inês, mil
vezes sofri na minha carne a tua morte. Via-o sempre – o espaço era pr'a
ele – o teu corpo de amor, tão grande e belo. Deixei de ver o sol:
via-o a ele. A brancura de flor da tua pele era a luz da minha solidão.
Vivia com o teu corpo na memória – como um lobo n'um fojo com a presa. E
então a minha dor – todo o meu gozo – foi reviver n'esta carne o teu
martírio. Mas mais, ainda mais que as tuas feridas, me faziam sofrer as
tuas mãos... As tuas mãos, amor, via-as pisadas, como asas partidas, que
ainda tremem... Eram a coisa mais triste que o sol viu. Os assassinos
tinham-nas pisado. O ar, a luz, faziam-nas sofrer. E eu ouvia-os pisar:
ouvia... ouvia... Oh! Foi como pisar pássaros mortos...
MARTIM, com uma voz sufocada.
– Afonso! Afonso!.. É como se eu a matasse... Faz-me mal. Pausa. Afonso emudece-o com um gesto.
PEDRO
–
Vivi um ano assim, do teu martírio. O teu sangue, amor, era o meu
vinho. A tua morte, Inês, foi o meu pão. Fugia ao sol: a luz
envenenava-me. Queria estar só, bem só, murado em mim: – cavava no
silêncio um fojo escuro pr'a me poder cevar na minha dor. O meu crânio
era uma câmara de tortura: – viviam lá um carrasco e os assassinos. E o
carrasco era eu, era o teu Pedro. Oirava de pensar... de sentir
sangue... P'ra ver se assossegava, ia montear. Corria os montes da Beira
doidamente. Entre halalis e vento, galopava. Moços de monte olhavam-me
pasmados. Nem seguia os javardos: galopava!... Quanto podia, à toa, sem
destino: – a fugir de mim-mesmo entre os meus galgos!... E o sono não
vinha, nunca vinha. Nem nas fragoas dos montes nem nos paços. Nos
pântanos d'argento, muita vez, apedrejei a minha própria imagem. Fui
cúmplice das coisas contra mim. Toda a terra viveu a endoidecer-me. As
árvores, na sombra, cochichavam: vinham fechar-me em rondas de conjura:
cresciam contra mim; que as amei sempre... N'um silêncio escarninho,
caminhavam... Uma noite, ao recolher – pobre de mim! – quis enterrar
n'um cedro a minha espada. A lâmina partiu com um tinir frio. (Pausa) E
às vezes, nas palmas d'estas mãos, quase sentia a polpa dos teus
seios!... Era um lobo o teu Pedro: era uma hiena. Mas um dia, "Alguém"
desceu ao fojo: – "Alguém" que era da morte e era da vida; e mais – de
além da morte e além da vida... E eu vi a Saudade ao pé de mim. Nunca
mais me deixou: Vivo com ela. Fez-se em mim carne e sangue: fez-se Inês.
Por isso sabes toda a minha vida. Por isso eu sei a morte como tu. Sou o
homem que viveu a vida e a morte: sou o homem-Saudade, o rei-Saudade...
MARTIM
– É o rei-Saudade, Afonso!..
AFONSO
– Eu bem sabia.
PEDRO
–
Sou o rei... o rei do maior reino... do reino que me deste, minha
Inês... Duas vezes Rainha!... Santa! Santa!... Se estou aqui ao pé de ti
– tudo foi bom!... A minha dor, Inês, beijo-a nos olhos!... beijo-a
como beijei a tua boca... como – cerrando os olhos na saudade – beijei,
beijei, beijei a tua alma... Tudo, tudo foi bom. Tudo eu bendigo. Oiço
bater o coração do meu destino. Agora sei, Inês... agora entendo.
Morreste moça – pr'a viveres na eternidade sempre moça. Bendito seja
sempre o teu martírio! Bendito o lobo em mim... bendita a hiena... (Mais
perto d'ela ainda, erguendo as mãos) Bendita tu, Inês, sempre bendita!
(Pausa. N'um tom d'intimidade mística) Estás outra vez no reino
pequenino. Ele foi-te fiel como o teu Pedro. Cada árvore sabe a tua
graça. A tarde cai lembrando o teu sorriso. A terra que tu pisaste
alimentou-me: era pão pr'a mim, mais do que pão. Oh! Mas Coimbra foi
como uma mãe. Como se o húmus recebesse a tua carne, floriu todo em
saudades – campo e montes... Terra de comunhão, carne de Inês. Como eu a
Vejo agora – a nossa Coimbra!... É uma Coimbra decantada na saudade...
uma Coimbra d'além... E rio e choupos, e olivais e paços, vozes de
sinos, voz de rouxinóis: é tudo, tudo feito de reflexos... Só ela vive
do meu reino agora. O meu reino lá foi – sumido em névoa. Adeus salas de
pedra dos meus paços... meu povo e minha corte... meu chicote de
justiceiro... noites de folgança ao som das longas... manhãs de
montaria... bons nebris... Sois uma asa ao fundo da memória. Só guardo
nos meus olhos o Mondego, tal como o vi depois de tu morreres. Eu não
tinha um irmão... Ninguém comigo. Fui ter com ele – o meu amigo de água.
Ia como uma lágrima doirada, com folhas secas a boiar, o céu ao fundo, e
os choupos nas margens a rezar... Assim ficou n'esta alma para sempre.
Lembras-te ? – uma vez, no ardor da sesta, adormeci no teu regaço. Era
em agosto. Ele corria aos nossos pés, n'um murmurinho: as suas águas
tinham sede como a areia. Pr'a me acordares – era já quase noite –
beijaste-me nos olhos, minha Inês. E eu quedei como um monte, em seu
burel de mato rude, quando uma nuvem da manhã o beija... Não sabia onde
estava. Tu sorrias. Entrevi n'esse instante o nosso reino... Ouve o teu
Pedro, Inês, peço-te muito: – havemos de nos lembrar do sol da terra! E
do Mondego, Inês, das suas águas. O sol da terra é irmão do teu cabelo.
Como eu o amei, como eu amei o teu cabelo!... Muitas vezes, a afogar-me
n'ele, sentia luz em mim, era meio-dia, como se Deus mungisse o sol
sobre a minha alma... Amava-o tanto como tu o sol. Tu amavas o sol
perdidamente. Até fugias dos meus braços, meu amor, para o ver a arraiar
por sobre os montes. Ao luzir d'alva, abrias a janela: "Anda ver, meu
Pedro, ele não tarda." Eu cingia-te quente, semi-nua. O pomar dormia. Só
o silêncio andava a perfumar-se no pomar. Tudo era cor de asas de
rouxinóis... Como tu te fazias pequenina!... A manhã vinha vindo além
dos montes... Os teus seios arfavam com a luz... E ficavas a olhar os
olhos rasos!... Que tinhas tu!?... Vias o céu sofrer?... Era pr'a dar a
aurora ao nosso amor!... E nascia... subia: encantamento!... Os teus
olhos faziam-se maiores. Oh! O que o sol gozou de viver n'eles!... Mesmo
na sombra – eram flores com raios... Os teus olhos olhavam-me na sombra
– como as janelas do meu paço olham a noite... Os meus agora vivem como
estrelas: dobam a luz dos teus sem descansar (Com opressão e êxtase)
Onde estou eu?... Não sei. Estou só contigo. Respiro o teu olhar: é luz
de luz... É o ar da minha alma – o teu olhar. E Alcobaça!?... A minha
coroa d'oiro!?... Alcobaça onde está!?... as altas naves!?... E os
sinos?... a corte!?... os sinos d'oiro a bailar no ar as minhas
bodas!?... Ainda os oiço... ainda... mas tão longe... É o princípio e o
fim de todo o nosso amor. Os teus seios uniram-se: ei-lo – o mundo!...
Oiço no teu silêncio cotovias... O som e a luz casaram-se, fundiram-se:
são o ar que eu respiro... o nosso ar... Oh! Asas... asas... dêem-me
asas!... É um abismo d'estrelas – este amor... Faz-me medo. É um
turbilhão de estrelas... (Com voz de aura, chamando) Inês!... Inês!...
Eu tenho medo... Sinto o vento de luz da eternidade...
Um momento, estende os braços como asas; e resvala inerte no lajedo.
fonte: http://www.jayrus.art.br/Apostilas/LiteraturaPortuguesa/Simbolismo/Antonio_Patricio_Pedro_o_Cru.htm