José Régio, pseudónimo de José
Maria dos Reis Pereira 1901 — Vila
do Conde, 22 de
Dezembro de 1969
dominava vários gêneros literários.
Sociedade burguesa e patriarcal
Valores sociais patriarcais x sensualidade e valores
individuais de eugenia
Visao de eugenia é criada a partir do olhar do narrador
(influenciado pelo peso dos ditames da sociedade patriarcal e burguesa)
Visão desfigurada da esposa
Patriarcado é um sistema de dominação e subordinação das
mulheres perdurado pelas épocas e culturas – Anna Colling
Literatura sincera – realidade exposta na obra
O foco narrativo de “O vestido cor de fogo” encontra-se no
modo a que Norman Friedman chama de “eu-protagonista”9, em que as percepções,
sentimentos e pensamentos são centrados em uma única personagem, no caso, o
marido, narrador inominado.
Enredo:
o narrador, provindo de uma família tradicional e burguesa, espera
encontrar no casamento a felicidade ideal dentro dos moldes sociais em que fora
criado.
Encontra Maria Eugénia, que o encanta à primeira vista,
apenas pela sua beleza física. Consumado o casamento, o narrador começa a
entrar em atrito com sua esposa, pois seus universos axiológicos opõem-se
radicalmente.
Após vários incidentes, um episódio anuncia o fracasso desse casamento construído
apenas na base sexual:
Maria Eugénia, para
provocar o marido, resolve ir a um baile trajando um vestido cor de fogo. Tal
fato causa irritação no
marido que termina por agredi-la fisicamente e chega à conclusão de que seu casamento se arruinara. Em perfeita conjunção com os
valores da sociedade patriarcal, o narrador de "O vestido cor de
fogo" busca uma mulher com valores próximos aos seus. Apresenta
ideais altruístas; no entanto, os mesmos não são concretizados em sua vida,
pois o narrador integra-
se aos conceitos e pré-conceitos de sua família e de seu grupo. A partir
do encontro com Maria Eugénia, o narrador confunde os propósitos coletivos com o desejo de uma vida
familiar tradicional. Essa confusão resultará na dissolução do casamento, na
sua desilusão e na consciência de seu fracasso.
ideais do narrador não coincidem com os desejos de sua
esposa, pois, durante o casamento, ela manifesta posturas mundanas, erotizadas,
sem, no entanto, adequar-se aos padrões matrimoniais desejados por ele, ao
recusar ter filhos para não estragar seu próprio corpo,
O narrador manifesta, no decorrer da narrativa, marcas de um
discurso social e patriarcal, na medida em que se propõe "moldar" a
personalidade da esposa, adequando-a à dele: "E eu ansiava não só possuir
Maria Eugénia, como principiar completando sua educação ao sabor de meu feitio;
ou antes: dos meus sonhos, e do lar que idealizava"
Vale lembrar que no início da novela, o narrador
apresenta-se como membro de uma família burguesa tradicional. Logo, seus
valores ideológicos coadunam-se com do patriarcado, cujas marcas persistem na
sociedade portuguesa da primeira metade do século XX. O desejo de “principiar
completando sua educação ao sabor de meu feito” demonstra o discurso patriarcal
de controle total sobre as mulheres, a ponto de elas serem vistas como objetos
e não como sujeitos construtores de uma identidade própria. O feminino deveria
estar, seguindo esse modelo falocêntrico, submetido aos valores instituídos
pelo masculino, como atesta Pierre Bourdieu, em A dominação masculina.
A dominação masculina, que constitui as mulheres como
objetos simbólicos, cujo ser (esse) é um ser percebido (percipi), tem por
efeito colocá-las em permanente estado de insegurança corporal, ou melhor, de
dependência simbólica: elas existem primeiro pelo, e para, o olhar dos outros,
ou seja, enquanto objetos receptivos, atraentes, disponíveis. Delas se espera
que sejam “femininas”, isto é, sorridentes, simpáticas, atenciosas, submissas,
discretas, contidas ou até mesmo apagadas.5
O discurso do narrador, como todo e qualquer discurso,
apresenta uma construção ideológica, sendo impossível afirmar sua neutralidade.
O discurso do poder estaria representado pelo homem branco,
adulto, heterossexual, com posses. “Todos os outros segmentos sociais devem, em
termos sociopolíticos, estar em uma posição submissa”7. Esses segmentos
representariam a desordem por constituírem uma ruptura ao poder pré-
estabelecido, o que advém a nomenclatura “sem sentido, sem valor”; isto é, a
qualificação negativa desses elementos por recusarem se adequar a um modelo de
identidade que o poder político institui como unitário, enquanto norma a ser
seguida.
Na narrativa regiana, Maria Eugénia é descrita na sua
ambivalência, primeiramente, uma mulher perfeita para os ideais matrimoniais
desejados pelo narrador; posteriormente, uma mulher marcada pelos seus desejos
eróticos, em desacordo com os ideais da sociedade patriarcal. Essa ambivalência
entre mulher real e mulher ideal processa-se no discurso do narrador, que
filtra os episódios da novela à sua maneira.
Ora, o conjunto de
dados relatados sobre a primeira Maria Eugénia não tem nada em comum com essa
idealização na medida em que a personagem feminina corporiza, depois do
casamento, o amor físico e ardor sexual, que se irão opor aos ideais culturais
e filantrópicos do protagonista, inviabilizando-os.10
A descrição de Maria Eugénia, enfatizada apenas nos aspectos
do amor físico e do ardor sexual, é representada figurativamente por quatro
signos que revelam profundo erotismo: o olhar, a boca, o pescoço e o vestido.
Assim, a figura feminina é vista apenas nos seus aspectos físicos. Vale lembrar
que o narrador, ao conhecer Eugénia, julga irrelevante o que disseram um ao
outro. O que mais o impressionou em Eugénia foi seu aspecto físico. Com relação
aos olhos de Eugénia, estes são caracterizados num momento de extremo ciúme da
parte do narrador. Esses olhos revelam uma ruptura da dominação exercida pelo
marido, pois representa uma autonomia da personalidade feminina no âmbito do
erotismo. Ao descrever novamente os olhos de sua esposa, o narrador revela um
ponto de vista machista, não reconhecendo o estatuto de igualdade e de
autonomia de uma mulher:
A verdade é que ela
olhava muito os homens, embora sem insistir; embora recolhendo logo os olhos.
Um furtivo olhar agudo lhe bastava para os examinar, os avaliar. E alguns havia
que, sem dúvida, atraiam particularmente os seus olhos. Quero dizer que minha
mulher os olhava do mesmo ponto de vista que geralmente nós temos, homens, para
as mulheres.11
Ao comparar o olhar da esposa a um olhar masculino, o
narrador a considera uma "mulher perdida", pois apresenta traços
similares ao universo masculino, de agente da conquista amorosa.
Durante o enredo da novela, encontramos várias recorrências
do signo "pescoço"
crise do casamento: "Pequenina, com seu pescoço alto,
ela fazia-me pensar, agora, numa víbora que sob os meus pés, se erguesse para
me morder”13 No mitoestilo14 de José Régio; isto é, no “estilo que permanece
para além das traduções”15, é muito comum encontrarmos a serpente, como símbolo
mítico, responsável pela expulsão de Adão e Eva do Paraíso.
Esse elemento simbólico representa o conhecimento, a
passagem do não-saber para o saber, o despertar para a sexualidade adormecida
o Dicionário de símbolos a conceitua como “um vertebrado que
encarna a psique inferior, o psiquismo obscuro, o que é raro, incompreensível,
misterioso”19. No discurso bíblico, tão presente na obra de José Régio, Eva é
tentada por uma serpente que lhe oferece o fruto da árvore do conhecimento,
representando o despertar da sexualidade. Adão e Eva foram expulsos do Jardim
do Éden após a mulher ter oferecido o fruto proibido ao homem. Trata-se de uma
desobediência a Deus, que é praticada pela mulher. Dessa forma, a Bíblia
legitima o discurso de que a mulher é a pecadora e, portanto, precisa ser
controlada pelo homem. Em “O vestido cor de fogo”, a mulher-serpente apresenta
o poder de seduzir não apenas o marido como também outros homens. É ela quem
desobedece, com sua sexualidade exacerbada, proveniente do seu “psiquismo
obscuro” (advindo do símbolo da serpente), os padrões de comportamentos
legitimados pela sociedade patriarcal. O pescoço, traço distintivo de Maria
Eugénia, além de ser erotizado pelo símbolo da serpente, apresenta outras
conotações sexuais: “O pescoço quase demasiado longo (e que, todavia, não
chegava a sê-lo) emergia, cor de marfim, grácil e ao mesmo tempo firme como um
caule, das rendas amarrotadas da camisa”20. De acordo com os trechos acima transcritos,
podemos perceber recorrências de traços sêmicos comuns ao signo “pescoço”, na
ótica do narrador. Ele o descreve, salientando sua desproporção em relação à
estrutura corporal de Maria Eugénia, como percebemos pelas expressões:
“desproporção”, “esquisito encanto”, “pescoço talvez demasiadamente alto”,
“salientava”, “pescoço alto”, “demasiadamente longo”. Revela, também,
sentimentos concomitantes de medo e de fascínio: “Esquisito encanto”, “brancura
ardente”, “grácil e ao mesmo tempo firme como um caule”, “víbora que sob os
meus pés, se erguesse para me morder”. Tais sentimentos ocorrem devido a uma
aproximação do signo "pescoço" com o órgão genital masculino,
considerado instrumento de dominação sobre a mulher. Podemos estabelecer essa
comparação se considerarmos o traço sêmico de firmeza do pescoço,
Assim, o narrador, que julgava ser a cabeça do
relacionamento (para ficarmos com as metáforas corporais), acaba por ser
conduzido pela mulher, descrita, de forma metonímica,
pelo pescoço. A conotação fálica também ocorre com a
comparação do pescoço (portanto, da mulher) a uma "víbora que sob os meus
pés, se erguesse para me morder". Dessa forma, o pescoço exerce sob o
narrador as sensações de medo, fascínio, perigo, no decorrer do envolvimento
erótico-amoroso. De conotação extremamente erótica, o signo "boca",
ligado a outros signos relativos à cor vermelha, desperta no narrador um desejo
sádico: "Quando à noite, Maria Eugénia repetia a cena, estendendo-me a
pequena boca de lábio carnudo, rubro, algumas vezes subiu em mim o desejo de
lhe morder essa boca, lha morder até sentir o gosto do seu sangue"21.
Entendemos o sadismo como uma destruição do objeto de prazer do sujeito. Assim,
ao perceber que os valores de sua esposa opunham-se aos seus, o narrador começa
a apresentar componentes sádicos de destruição dessa mulher que representava a
desordem na sua vida. No fragmento transcrito, percebemos a ênfase na cor
vermelha: "rubro" e "sangue", o que nos remete a outros
signos correlatos, presentes na novela: "labaredas",
"chama" e "ardor". Nas descrições que o narrador faz de
Maria Eugénia, ele a compara a uma verdadeira chama pronta a ser ateada e a um
animal terrível e insaciável, ressaltando a predisposição de sua mulher ao
comportamento erótico e até mesmo inferindo uma predisposição ao adultério:
Ora me parecia ver em
Maria Eugénia uma chama sempre mais ou menos pronta a ser ateada, e levantar
labaredas, (e a imagem diz afinal o mesmo, só é mais brutal ...) ora uma
pequenina fera terrível, insaciável, que, por menos que eu a provocasse, estava
pronta a rugir, a manifestar-se, a estorcer-se..." 22
Sim, eu conhecia o
ardor daquele pequeno corpo esbelto, ao mesmo tempo delicado e firme, sólido e
flexível, que uma força como estranha convulsionava, em certos momentos,
tornando-se quase terrível ... Só me não lembrara ainda, ou me não detivera a
pensar nisso, que tal ardor pudesse, alguma vez, solicitar outro homem. 23
reação de estranhamento do narrador no tocante ao corpo de
sua esposa, o que vemos pelo uso da expressão "força estranha". Além
disso, esse corpo que recusa o controle do marido é visto, pela ótica do
narrador-protagonista como uma oferenda a outros homens, provocando nele
atitudes ciumentas. A sexualidade de Eugénia causa-lhe medo e fascínio,
trazendo-lhe insegurança e despertando-lhe o ciúme, intensificado no clímax da
narrativa, com a presença de outro signo
relativo à sensualidade excessiva da personagem feminina: o
vestido cor de fogo. Eunice Cabral assim analisa o signo "vestido" na
novela regiana:
Envergando o vestido cor de fogo como desafio a uma ordem
instituída, (...) Maria Eugénia afirma, de um modo provocatório, ter dúvidas
sobre o facto de ser uma "mulher honesta". Assim, o vestido vermelho
usado por essa como signo do desejo de agradar a outros homens e de se desnudar
para eles, é a metáfora da inadequação da personagem ao lugar que ocupa
socialmente.24
Entendemos o "vestido" como signo desencadeador do
clímax da novela, uma vez que, ao se apresentar ao marido com um vestido
vermelho, Eugénia não só o provoca, como afirma sua sexualidade exacerbada,
tornando-se inadequada ao mundo traçado pelo narrador para a constituição de
seu lar. Assim, marido e mulher entram em choque de valores e o casamento de
ambos chega à ruína. O marido, situado no paradigma da ordem e do poder,
interpreta os comportamentos da esposa como inadequados “ao lugar que ocupa
socialmente”. Por conta disso, reprime Maria Eugénia por meio de uma agressão
física e da destruição do vestido cor de fogo, signo que desafia a “ordem
instituída”, no entender de Eunice Cabral.
A violência funciona como uma das armas do patriarcado no
controle das mulheres.
Ana Colling define o poder repressor como algo que “proíbe,
nega, mata e anula
A dominação masculina não atua somente por meio da violência
física, como também pela violência simbólica, sobretudo quando o narrador quer
impor um padrão de comportamento à sua esposa no que se refere à vestimenta.
Para Pierre Bourdieu, “a moral feminina se impõe, sobretudo, através de uma
disciplina incessante, relativa a todas as partes do corpo, e que se faz
lembrar e se exerce continuamente através da coação quanto aos trajes e aos
penteados”27. O fracasso do casamento das personagens de “O vestido cor de
fogo” é resultante de um conflito entre os valores sociais do narrador e os
valores individuais de Maria Eugénia. Quanto ao conflito individual versus
social, característica marcante do movimento presencista
destacam- se o conflito do indivíduo com a sociedade, o
falseamento das relações humanas, a problemática da aparência e da essência, as
máscaras sociais”
podemos entender o casamento do narrador com Maria Eugénia
como uma problemática resultante de conflitos de aparência do narrador versus
essência de Eugénia, que vivem uma relação marcada pelo uso que o narrador faz
de máscaras sociais, causando o falseamento de sua vida conjugal. O narrador
tenta, assim, "moldar", ou ainda, "castrar" a personalidade
instintiva de sua esposa. Essa castração de personalidade é referida por Massaud
Moisés, no livro A literatura portuguesa em perspectiva: "Assim, em
História de mulheres, o contista confronta o mundo instintivo, natural de
mulheres massacradas pelo social, com os costumes sufocantes que tentam castrar
os seres”29. Podemos afirmar que "O vestido cor de fogo" é uma
narrativa presencista paradigmática, uma vez que apresenta a tensão dialética
entre valores sociais e valores instintivos ou individuais. Nesta novela,
podemos perceber a impossibilidade da redução do indivíduo ao social. O
fracasso do casamento do narrador e de Eugénia ocorre justamente pelo fato de
que seus valores diferem-se: Ele busca "moldar" sua esposa aos
valores patriarcais e burgueses, enquanto ela, de acordo com a focalização do
narrador, demonstra insubmissão e rebeldia às normas sociais pré-estabelecidas,
resultando, no arquétipo da "mulher amante", da "mulher
danada", da "mulher perdida", ou ainda, da mulher cuja
sexualidade exacerbada afronta todo o universo machista e patriarcal, o qual é
tão presente na História da humanidade, e que precisa ser contestado nas
práticas sociais.
VER ARTIGO: OS SIGNOS ERÓTICOS EM “O VESTIDO COR DE FOGO”, DE JOSÉ RÉGIO
BAIXAR EM: http://revistatrias.pro.br/index.php/artigos/investigacao-e-analise/72-os-signos-eroticos-em-jose-regio.html#.VMDrS0fF_VU
Nenhum comentário:
Postar um comentário