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quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

JOSÉ RÉGIO

José Régio, pseudónimo de José Maria dos Reis Pereira 1901  Vila do Conde, 22 de Dezembro de 1969 dominava vários gêneros literários.
Sociedade burguesa e patriarcal
Valores sociais patriarcais x sensualidade e valores individuais de eugenia
Visao de eugenia é criada a partir do olhar do narrador (influenciado pelo peso dos ditames da sociedade patriarcal e burguesa)
Visão desfigurada da esposa
Patriarcado é um sistema de dominação e subordinação das mulheres perdurado pelas épocas e culturas – Anna Colling
Literatura sincera – realidade exposta na obra
O foco narrativo de “O vestido cor de fogo” encontra-se no modo a que Norman Friedman chama de “eu-protagonista”9, em que as percepções, sentimentos e pensamentos são centrados em uma única personagem, no caso, o marido, narrador inominado.

Enredo:
o narrador, provindo de uma família tradicional e burguesa, espera encontrar no casamento a felicidade ideal dentro dos moldes sociais em que fora criado.
Encontra Maria Eugénia, que o encanta à primeira vista, apenas pela sua beleza física. Consumado o casamento, o narrador começa a entrar em atrito com sua esposa, pois seus universos axiológicos opõem-se radicalmente.
Após vários incidentes, um episódio anuncia o fracasso desse casamento construído apenas na base sexual: Maria Eugénia, para provocar o marido, resolve ir a um baile trajando um vestido cor de fogo. Tal fato causa irritação no marido que termina por agredi-la fisicamente e chega à conclusão de que seu casamento se arruinara. Em perfeita conjunção com os valores da sociedade patriarcal, o narrador de "O vestido cor de fogo" busca uma mulher com valores próximos aos seus. Apresenta ideais altruístas; no entanto, os mesmos não são concretizados em sua vida, pois o narrador integra- se aos conceitos e pré-conceitos de sua família e de seu grupo. A partir do encontro com Maria Eugénia, o narrador confunde os propósitos coletivos com o desejo de uma vida familiar tradicional. Essa confusão resultará na dissolução do casamento, na sua desilusão e na consciência de seu fracasso.
ideais do narrador não coincidem com os desejos de sua esposa, pois, durante o casamento, ela manifesta posturas mundanas, erotizadas, sem, no entanto, adequar-se aos padrões matrimoniais desejados por ele, ao recusar ter filhos para não estragar seu próprio corpo,
O narrador manifesta, no decorrer da narrativa, marcas de um discurso social e patriarcal, na medida em que se propõe "moldar" a personalidade da esposa, adequando-a à dele: "E eu ansiava não só possuir Maria Eugénia, como principiar completando sua educação ao sabor de meu feitio; ou antes: dos meus sonhos, e do lar que idealizava"
Vale lembrar que no início da novela, o narrador apresenta-se como membro de uma família burguesa tradicional. Logo, seus valores ideológicos coadunam-se com do patriarcado, cujas marcas persistem na sociedade portuguesa da primeira metade do século XX. O desejo de “principiar completando sua educação ao sabor de meu feito” demonstra o discurso patriarcal de controle total sobre as mulheres, a ponto de elas serem vistas como objetos e não como sujeitos construtores de uma identidade própria. O feminino deveria estar, seguindo esse modelo falocêntrico, submetido aos valores instituídos pelo masculino, como atesta Pierre Bourdieu, em A dominação masculina.
A dominação masculina, que constitui as mulheres como objetos simbólicos, cujo ser (esse) é um ser percebido (percipi), tem por efeito colocá-las em permanente estado de insegurança corporal, ou melhor, de dependência simbólica: elas existem primeiro pelo, e para, o olhar dos outros, ou seja, enquanto objetos receptivos, atraentes, disponíveis. Delas se espera que sejam “femininas”, isto é, sorridentes, simpáticas, atenciosas, submissas, discretas, contidas ou até mesmo apagadas.5
O discurso do narrador, como todo e qualquer discurso, apresenta uma construção ideológica, sendo impossível afirmar sua neutralidade.
O discurso do poder estaria representado pelo homem branco, adulto, heterossexual, com posses. “Todos os outros segmentos sociais devem, em termos sociopolíticos, estar em uma posição submissa”7. Esses segmentos representariam a desordem por constituírem uma ruptura ao poder pré- estabelecido, o que advém a nomenclatura “sem sentido, sem valor”; isto é, a qualificação negativa desses elementos por recusarem se adequar a um modelo de identidade que o poder político institui como unitário, enquanto norma a ser seguida.
Na narrativa regiana, Maria Eugénia é descrita na sua ambivalência, primeiramente, uma mulher perfeita para os ideais matrimoniais desejados pelo narrador; posteriormente, uma mulher marcada pelos seus desejos eróticos, em desacordo com os ideais da sociedade patriarcal. Essa ambivalência entre mulher real e mulher ideal processa-se no discurso do narrador, que filtra os episódios da novela à sua maneira.
Ora, o conjunto de dados relatados sobre a primeira Maria Eugénia não tem nada em comum com essa idealização na medida em que a personagem feminina corporiza, depois do casamento, o amor físico e ardor sexual, que se irão opor aos ideais culturais e filantrópicos do protagonista, inviabilizando-os.10
A descrição de Maria Eugénia, enfatizada apenas nos aspectos do amor físico e do ardor sexual, é representada figurativamente por quatro signos que revelam profundo erotismo: o olhar, a boca, o pescoço e o vestido. Assim, a figura feminina é vista apenas nos seus aspectos físicos. Vale lembrar que o narrador, ao conhecer Eugénia, julga irrelevante o que disseram um ao outro. O que mais o impressionou em Eugénia foi seu aspecto físico. Com relação aos olhos de Eugénia, estes são caracterizados num momento de extremo ciúme da parte do narrador. Esses olhos revelam uma ruptura da dominação exercida pelo marido, pois representa uma autonomia da personalidade feminina no âmbito do erotismo. Ao descrever novamente os olhos de sua esposa, o narrador revela um ponto de vista machista, não reconhecendo o estatuto de igualdade e de autonomia de uma mulher:
A verdade é que ela olhava muito os homens, embora sem insistir; embora recolhendo logo os olhos. Um furtivo olhar agudo lhe bastava para os examinar, os avaliar. E alguns havia que, sem dúvida, atraiam particularmente os seus olhos. Quero dizer que minha mulher os olhava do mesmo ponto de vista que geralmente nós temos, homens, para as mulheres.11
Ao comparar o olhar da esposa a um olhar masculino, o narrador a considera uma "mulher perdida", pois apresenta traços similares ao universo masculino, de agente da conquista amorosa.
Durante o enredo da novela, encontramos várias recorrências do signo "pescoço"
crise do casamento: "Pequenina, com seu pescoço alto, ela fazia-me pensar, agora, numa víbora que sob os meus pés, se erguesse para me morder”13 No mitoestilo14 de José Régio; isto é, no “estilo que permanece para além das traduções”15, é muito comum encontrarmos a serpente, como símbolo mítico, responsável pela expulsão de Adão e Eva do Paraíso.
Esse elemento simbólico representa o conhecimento, a passagem do não-saber para o saber, o despertar para a sexualidade adormecida
o Dicionário de símbolos a conceitua como “um vertebrado que encarna a psique inferior, o psiquismo obscuro, o que é raro, incompreensível, misterioso”19. No discurso bíblico, tão presente na obra de José Régio, Eva é tentada por uma serpente que lhe oferece o fruto da árvore do conhecimento, representando o despertar da sexualidade. Adão e Eva foram expulsos do Jardim do Éden após a mulher ter oferecido o fruto proibido ao homem. Trata-se de uma desobediência a Deus, que é praticada pela mulher. Dessa forma, a Bíblia legitima o discurso de que a mulher é a pecadora e, portanto, precisa ser controlada pelo homem. Em “O vestido cor de fogo”, a mulher-serpente apresenta o poder de seduzir não apenas o marido como também outros homens. É ela quem desobedece, com sua sexualidade exacerbada, proveniente do seu “psiquismo obscuro” (advindo do símbolo da serpente), os padrões de comportamentos legitimados pela sociedade patriarcal. O pescoço, traço distintivo de Maria Eugénia, além de ser erotizado pelo símbolo da serpente, apresenta outras conotações sexuais: “O pescoço quase demasiado longo (e que, todavia, não chegava a sê-lo) emergia, cor de marfim, grácil e ao mesmo tempo firme como um caule, das rendas amarrotadas da camisa”20. De acordo com os trechos acima transcritos, podemos perceber recorrências de traços sêmicos comuns ao signo “pescoço”, na ótica do narrador. Ele o descreve, salientando sua desproporção em relação à estrutura corporal de Maria Eugénia, como percebemos pelas expressões: “desproporção”, “esquisito encanto”, “pescoço talvez demasiadamente alto”, “salientava”, “pescoço alto”, “demasiadamente longo”. Revela, também, sentimentos concomitantes de medo e de fascínio: “Esquisito encanto”, “brancura ardente”, “grácil e ao mesmo tempo firme como um caule”, “víbora que sob os meus pés, se erguesse para me morder”. Tais sentimentos ocorrem devido a uma aproximação do signo "pescoço" com o órgão genital masculino, considerado instrumento de dominação sobre a mulher. Podemos estabelecer essa comparação se considerarmos o traço sêmico de firmeza do pescoço,
Assim, o narrador, que julgava ser a cabeça do relacionamento (para ficarmos com as metáforas corporais), acaba por ser conduzido pela mulher, descrita, de forma metonímica,
pelo pescoço. A conotação fálica também ocorre com a comparação do pescoço (portanto, da mulher) a uma "víbora que sob os meus pés, se erguesse para me morder". Dessa forma, o pescoço exerce sob o narrador as sensações de medo, fascínio, perigo, no decorrer do envolvimento erótico-amoroso. De conotação extremamente erótica, o signo "boca", ligado a outros signos relativos à cor vermelha, desperta no narrador um desejo sádico: "Quando à noite, Maria Eugénia repetia a cena, estendendo-me a pequena boca de lábio carnudo, rubro, algumas vezes subiu em mim o desejo de lhe morder essa boca, lha morder até sentir o gosto do seu sangue"21. Entendemos o sadismo como uma destruição do objeto de prazer do sujeito. Assim, ao perceber que os valores de sua esposa opunham-se aos seus, o narrador começa a apresentar componentes sádicos de destruição dessa mulher que representava a desordem na sua vida. No fragmento transcrito, percebemos a ênfase na cor vermelha: "rubro" e "sangue", o que nos remete a outros signos correlatos, presentes na novela: "labaredas", "chama" e "ardor". Nas descrições que o narrador faz de Maria Eugénia, ele a compara a uma verdadeira chama pronta a ser ateada e a um animal terrível e insaciável, ressaltando a predisposição de sua mulher ao comportamento erótico e até mesmo inferindo uma predisposição ao adultério:
Ora me parecia ver em Maria Eugénia uma chama sempre mais ou menos pronta a ser ateada, e levantar labaredas, (e a imagem diz afinal o mesmo, só é mais brutal ...) ora uma pequenina fera terrível, insaciável, que, por menos que eu a provocasse, estava pronta a rugir, a manifestar-se, a estorcer-se..." 22
Sim, eu conhecia o ardor daquele pequeno corpo esbelto, ao mesmo tempo delicado e firme, sólido e flexível, que uma força como estranha convulsionava, em certos momentos, tornando-se quase terrível ... Só me não lembrara ainda, ou me não detivera a pensar nisso, que tal ardor pudesse, alguma vez, solicitar outro homem. 23
reação de estranhamento do narrador no tocante ao corpo de sua esposa, o que vemos pelo uso da expressão "força estranha". Além disso, esse corpo que recusa o controle do marido é visto, pela ótica do narrador-protagonista como uma oferenda a outros homens, provocando nele atitudes ciumentas. A sexualidade de Eugénia causa-lhe medo e fascínio, trazendo-lhe insegurança e despertando-lhe o ciúme, intensificado no clímax da narrativa, com a presença de outro signo
relativo à sensualidade excessiva da personagem feminina: o vestido cor de fogo. Eunice Cabral assim analisa o signo "vestido" na novela regiana:
Envergando o vestido cor de fogo como desafio a uma ordem instituída, (...) Maria Eugénia afirma, de um modo provocatório, ter dúvidas sobre o facto de ser uma "mulher honesta". Assim, o vestido vermelho usado por essa como signo do desejo de agradar a outros homens e de se desnudar para eles, é a metáfora da inadequação da personagem ao lugar que ocupa socialmente.24
Entendemos o "vestido" como signo desencadeador do clímax da novela, uma vez que, ao se apresentar ao marido com um vestido vermelho, Eugénia não só o provoca, como afirma sua sexualidade exacerbada, tornando-se inadequada ao mundo traçado pelo narrador para a constituição de seu lar. Assim, marido e mulher entram em choque de valores e o casamento de ambos chega à ruína. O marido, situado no paradigma da ordem e do poder, interpreta os comportamentos da esposa como inadequados “ao lugar que ocupa socialmente”. Por conta disso, reprime Maria Eugénia por meio de uma agressão física e da destruição do vestido cor de fogo, signo que desafia a “ordem instituída”, no entender de Eunice Cabral.
A violência funciona como uma das armas do patriarcado no controle das mulheres.
Ana Colling define o poder repressor como algo que “proíbe, nega, mata e anula
A dominação masculina não atua somente por meio da violência física, como também pela violência simbólica, sobretudo quando o narrador quer impor um padrão de comportamento à sua esposa no que se refere à vestimenta. Para Pierre Bourdieu, “a moral feminina se impõe, sobretudo, através de uma disciplina incessante, relativa a todas as partes do corpo, e que se faz lembrar e se exerce continuamente através da coação quanto aos trajes e aos penteados”27. O fracasso do casamento das personagens de “O vestido cor de fogo” é resultante de um conflito entre os valores sociais do narrador e os valores individuais de Maria Eugénia. Quanto ao conflito individual versus social, característica marcante do movimento presencista
destacam- se o conflito do indivíduo com a sociedade, o falseamento das relações humanas, a problemática da aparência e da essência, as máscaras sociais”

podemos entender o casamento do narrador com Maria Eugénia como uma problemática resultante de conflitos de aparência do narrador versus essência de Eugénia, que vivem uma relação marcada pelo uso que o narrador faz de máscaras sociais, causando o falseamento de sua vida conjugal. O narrador tenta, assim, "moldar", ou ainda, "castrar" a personalidade instintiva de sua esposa. Essa castração de personalidade é referida por Massaud Moisés, no livro A literatura portuguesa em perspectiva: "Assim, em História de mulheres, o contista confronta o mundo instintivo, natural de mulheres massacradas pelo social, com os costumes sufocantes que tentam castrar os seres”29. Podemos afirmar que "O vestido cor de fogo" é uma narrativa presencista paradigmática, uma vez que apresenta a tensão dialética entre valores sociais e valores instintivos ou individuais. Nesta novela, podemos perceber a impossibilidade da redução do indivíduo ao social. O fracasso do casamento do narrador e de Eugénia ocorre justamente pelo fato de que seus valores diferem-se: Ele busca "moldar" sua esposa aos valores patriarcais e burgueses, enquanto ela, de acordo com a focalização do narrador, demonstra insubmissão e rebeldia às normas sociais pré-estabelecidas, resultando, no arquétipo da "mulher amante", da "mulher danada", da "mulher perdida", ou ainda, da mulher cuja sexualidade exacerbada afronta todo o universo machista e patriarcal, o qual é tão presente na História da humanidade, e que precisa ser contestado nas práticas sociais.

VER ARTIGO: OS SIGNOS ERÓTICOS EM “O VESTIDO COR DE FOGO”, DE JOSÉ RÉGIO
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